Ao espelho com António Telmo

MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Maria do Céu Costa


Palestra inserida no “Ciclo de Misteriosofia“, org. António Telmo – Vida e Obra. Sede da AMORC em Lisboa, 7.12.2017; revista Incomunidade.com; sessão télmica na Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa, 20.01.2018.


Aviso à entrada

Não sou cabalista nem esoterista, e nem sequer conheço em profundidade a obra de António Telmo. No entanto, a sua Gramática secreta da língua portuguesa é-me familiar; o bastante para há uns anos lhe ter escrito a convidar para um dos colóquios “Discursos e Práticas Alquímicas”, que organizei com José Augusto Mourão. António Telmo respondeu a agradecer o convite, mas não o podia aceitar, por lhe ser já muito difícil sair de casa.

Se a isto se limita o meu trato com um autor tão difícil como António Telmo, que vos poderia propor para tema de palestra? Exatamente aquilo para que me desafiaram Pedro Martins, Risoleta Pinto Pedro e Maria Azenha: que lesse o autor à luz da simbologia carbonária, isto é, da Maçonaria Florestal. Facilitaram-me até a tarefa oferecendo para corpus apenas dois textos curtos, ambos publicados no volume IV das Obras Completas de António Telmo, Filosofia e Kabbalah: “Para um Movimento Metafísico de Ecologia” e “Louvor da matéria”. Corpus a que acrescentei “Caçando com cão”, “Os Dioscuros”, a série de poemas intitulada “Narciso”, e alguns mais.

E com Narciso podia começar o espelho, ou a especulação, pois bem sabemos que este gesto de nos pormos um em frente do outro nunca reflete quem somos, antes propõe aquela caçada ao autoconhecimento que faz parte da iniciação no Rito Florestal, e leva o Mestre a dizer ao Bom Primo Fendedor: “Quando foste apresentado pela primeira vez à Venda, foste anunciado como pesquisador”.

Não digo com isto que António Telmo fosse carbonário ou pertencesse a algum outro ramo da Maçonaria Verde, que compreende Charbonniers, Jardineiros e outros. Afirmo, sim, que a autognose é o ponto de partida para a demanda do conhecimento, por isso faz parte de qualquer iniciação; e mesmo que não se trate de iniciação em Ordem, o Nosce te ipsum pertence à cultura em geral. Basta olhar para mitos como o de Eco e Narciso, de Eros e Psique ou de narrativas em que a personagem viaja, para darmos conta do facto. O sentido do conto de Telmo “Caçando com cão” mostra que até uma ação como a de um predador a atacar a presa pode ser entendida como demanda do conhecimento. Razão pela qual, nesse texto, Telmo cita de Aristóteles que “A Filosofia é uma caçada”.

Por isso, sejamos pedreiros, carvoeiros ou jardineiros, conheçamos ou não Freud e Yung, temos em nós, e muito em especial os poetas, como recôndita fonte, toda a essência dos mitos e dos símbolos. É o que afirma por exemplo Sarane Alexandrian, esse que mais do que ninguém tratou por tu os primeiros surrealistas, e bem sabemos como estes mergulharam fundo no conhecimento próprio. Tal aconteceu através de atos mágicos como a escrita automática e atenção a misteriosos acontecimentos e coincidências a que deram o nome de “acasos objetivos”.

O conhecimento de si mesmo espelha-se no conhecimento do interlocutor, com a sua familiaridade com a psicanálise, e contacto com esferas que completam o real ou o transcendem na direção do que o desejo quer divino. Esse voo holístico, para usar conceito em voga, imprime-se no próprio nome, sobre-realismo, que se queria apropriar de toda a realidade, incluído o sobrenatural.

Então, se muito do que vos trouxer do Rito Florestal – ou de parte incerta – coincidir com a vossa própria experiência do símbolo, se não vos trouxer senão a banal verificação de que a simbologia é sempre a mesma, quer isso dizer que o símbolo não é privativo do meu nem do vosso rito. O símbolo é-nos comum, está impresso em nós como memória de algo obscuro, da mesma maneira que o ADN transporta não só informação genética, mas sobretudo o suporte físico dessa informação, isto é, os mesmos genes dos nossos pais, avós e antepassados muitíssimo mais remotos.

Penso, como Sarane Alexandrian, que o poeta, tal como o xamã e o Mestre iniciado, tem capacidade para trazer à luz essa informação abscôndita, quem sabe se de um Paraíso ou de uma terra tão distantes que só a saudade os lembra sob a forma de experiência poética. Ora é essa experiência poética o que desejo estimular em vós com a minha palestra sobre António Telmo. Se o conseguir, darei por cumprida a missão desta noite.

De como a madeira é a matéria do mundo

Um homem que pôs a gramática diante do espelho para revelar o seu rosto secreto, que acreditava no poder mágico de certas palavras, decerto gostaria que eu começasse a minha viagem no interior da sua com o início do livro de Jacques Brengues, La Franc-Maçonnerie du Bois – Protectrice de la Forêt. O autor menciona a analogia estabelecida entre a palavra-chave que une o Rito Florestal e a madeira implícita no “Louvor da matéria”, assinado por António Telmo. Neste texto, logo num dos primeiros versículos, Telmo afirma que “a madeira é a matéria do mundo”. Mais longe, adianta que o Templo foi construído com madeira, daí que os carpinteiros lhe sejam anteriores. Matéria, mãe, madre, matriz e madeira são palavras da mesma família, aliás são a mesma palavra em fases e modos de evolução diferentes. A madeira, diz Telmo, vem antes do Templo como material de construção, por isso os primeiros mestres construtores foram os carpinteiros e os marceneiros. Falemos mais claro: o Templo de Salomão foi construído com os cedros do Líbano, por isso o granito, o xisto, o calcário e o mármore só aparecem na construção de templos mais recentes.

Desviando para a Ecologia o rumo à conversa, com a qual de resto concordo inteiramente, diria que a matriz da Mater, ou Gaia, é a floresta, por isso, no S.O.S. Planeta Azul, precisamos de proteger as árvores se quisermos salvar a Vida.

Entre o Povo da Floresta, uma das lições emblemáticas ministradas pela Mãe ou pelo Pai Mestre ao candidato inicia-se com a identificação do corpus a estudar:

“- Bom Primo, a madeira sobre a qual tiveste de trabalhar era bruta e informe. Nem os próprios Mestres podiam conhecer os defeitos e as belezas dela. Sob a inspeção dos chefes, foste encarregado de a limpar e desbastar…”

Estas palavras aludem ao próprio Aprendiz, como sendo ele o tronco de árvore cuja casca grossa precisa de aplainar mediante o autoconhecimento. Se não souber quais os seus vícios e defeitos, não os poderá retificar. Quanto mais se aperfeiçoar, mais intensa será a passagem das trevas à Luz, até que o seu caráter atinja o ponto representado por algo tão perfeito como o polígono dos seis lados:

«- Bom Primo Fendedor – diz o Pai Mestre -, esta madeira cúbica e aplainada, que foi polida, e que acabaste de trabalhar, deve servir-te de modelo para o que resta fazer sobre a madeira bruta […]. Fizeram-te dar seis golpes nesta madeira de seis lados para te lembrar de que não existe nenhuma parte do teu ser que não possa ser retificada, se desejas alcançar a regularidade deste modelo.».

Voltemos entretanto à obra de Jacques Brengues: ela abre com uma citação do livro de René Guénon, Le symbolisme de la croix, o simbolismo da cruz, em que se declara que tudo o que diz respeito à simbologia da árvore precisava de estudo específico. Os carvoeiros ou Bons Primos são árvores, e por vezes até adoptam para nome simbólico o de Carvalho, Salgueiro e outras espécies arbóreas.

Antes de chegar à palavra-chave, e já que a declaração de Guénon foi retirada de um livro sobre a cruz, o momento e o lugar são oportunos para dizer que podem ser ateístas outras associações de Bons Primos, mas a Carbonária é cristã. Em vários momentos da comunicação oral e escrita invoca-se a proteção do Bom Primo Jesus Cristo, normalmente na companhia do patrono, o nosso Bom Primo S. Teobaldo.

Ora a palavra-chave da Franco-Maçonaria da Madeira, comum a diversas línguas, faz parte, diz Jacques Brengues, de um lote de termos do indo-europeu iniciados pelo som B, como BHA, BHEL e BLEU, que exprimem atividades elementares da boca, a exemplo de voz, palavra e sopro. Nas nossas línguas contemporâneas, a palavra-chave é bois, em francês; em italiano, bosco; bosc em provençal, boscus no baixo-latim, bush em inglês e alemão, e Jaques Brengues não sabia português, por isso acrescento eu o nosso bosque. A palavra bois tanto refere o bosque como a lenha. Tal como o nosso madeiro tanto refere o lenho como a cruz. Entre as saudações e invocações dos carvoeiros é do rito dizer-se “Que reine a paz em nossos Bosques”. As alfaias são próprias dos habitantes da floresta, como a machadinha, para pedir um contributo usa-se o tronco das esmolas, os textos escritos são pranchas, balaústres e obras de marcenaria.

«A madeira é a matéria do mundo», escreve Telmo. Não sei o que queria ele dizer com isso a si mesmo, a mim lembra-me o carbono, símbolo químico C, que é também a raiz das palavras carbonário, carvão e carvoeiro. Não  passaria adiante do nome com que também posso assinar esta “prancha”, como diria o Povo da Floresta – Stella Carbono.

São inúmeros os aspetos científicos do carbono acerca dos quais não sei falar, basta dizer que sem carbono não existiria vida na Terra. Dezanove por cento da nossa massa corporal é constituída por esse elemento químico, C. O carbono é constitutivo de todas as formas orgânicas e de muitas inorgânicas. Desde o carvão ao anidrido carbónico, essencial à fotossíntese, respiração de plantas como roseiras que permite a nossa própria respiração, ao absorver da atmosfera o CO2 e lançar nela o oxigénio, a “matéria do mundo” apresenta-se nas mais diversas formas. Registo apenas o diamante, carbono puro, por ser belo, valioso, e o mais duro dos minerais, e a grafite, constitutiva do lápis. Com lapis/pedra apraz-me agora louvar tanto os escritores como os pedreiros.

Sim, António Telmo assevera um facto natural, por muito que a sua enigmática frase possa ser indecifrável, por eventualmente vir encoberta pelo véu cabalístico. Há no entanto mundos irrevelados que se revelam ao espelho, tornando-se claros e distintos. Ora no mundo das coisas óbvias, reais e científicas, é certo que a madeira, na sua faceta carbónica, é a matéria do mundo.

Em António Telmo, de comum com o Povo da Floresta, temos a tendência para sacralizar a Natureza, isto é, para a sentir como templo, e por isso nesse templo praticar um rito. Seja exemplo o texto “Caçando com cão”, no montado alentejano, em que o autor desenha o espaço sagrado e até invoca Diana para inquirir se não será a deusa quem determina que a caçada seja um ato mágico. O cão é o fiel amigo que serve de guia e cobre o caçador, protegendo-o de perigos externos.

Neste ponto gostava de partilhar convosco uma experiência pessoal. Uma associação de Charbonniers belgas e franceses convidou-me a visitar o seu templo. Então, faz agora dois anos, aproveitei para o efeito um encontro de herbertianos na Sorbonne Nouvelle. Findas as sessões, apanhei o TGV para Lille. Na estação esperava-me o Bom Primo Pierre, que me conduziu de automóvel a um bosque, no meio do qual se erguia um pavilhão de caça. Em redor, gansos e galinhas, guardados por cães de patas curtas e longas orelhas, decerto os cães especializados nas caçadas. Almoçámos no pavilhão algo que me foi apresentado como prato tradicional flamengo, cozinhado pela mítica protetora daqueles Carvoeiros, Mère Cateau. A maternal patrona, à maneira de deusa-mãe, protegia e acarinhava os carvoeiros, dando-lhes de comer, em todos os sentidos do verbo “comer”. Então o prato era um simples cozido de língua de vaca com batatas e repolho.

Antes porém do ágape (e recordo que a palavra, tal como Mère Cateau, refere tanto o amor como a comida), realizou-se a visita ao templo, que eu esperava fosse semelhante ao que conheço no Paraná, inserido na Mata Atlântica: uma casinha de madeira rodeada por bracatingas, as árvores comuns naquele lugar do Brasil, no interior recheada com a coleção interminável de alfaias, mobílias, cortinas, cordas, livros e demais objetos ritualísticos. Na realidade, a única semelhança que notei entre os dois templos foi nas árvores, esbeltas, de pele manchada como o camuflado militar, pouco frondosas. Não sei se seriam faias. Vejo agora que a semelhança se estabelece, não com o templo no Paraná, sim com o montado alentejano onde António Telmo caçava, porque não havia casa nenhuma naquele bosque flamengo: o Templo era a própria Floresta. Um círculo invisível, mostrado com o movimento da mão, definia os limites e o desenho do recinto; de dois ramos de duas árvores, unidos, pendia sobre um pote de ferro o que entendi como lustre, representação do Sol e da Lua; na realidade, assim fui instruída, o objeto, que só reconheci ao aproximar-me dele, era o símbolo de Mère Cateau, a protetora dos carvoeiros: muito mais profano que sagrado, a meus olhos, o lustre era, nem mais nem menos, um repolho.

Na prática do ritual, como paramentos, os carvoeiros flamengos só usam um avental de pele de borrego. Antes das sessões, o cobridor, enroupado com pele de urso, executa uma série de voltas no lado exterior do círculo mágico, para afastar com um varapau os potenciais inimigos.

Para cúmulo da surpresa, os Bons Primos Charbonniers chamaram-me a atenção para um objeto estranhíssimo no meio da floresta, e que era o altar do templo: enorme, pesada, vermelha de ferrugenta, a transpirar metalurgia, uma bigorna. Ferreiros e alquimistas, pensei. O fogo do trabalho dos metais aliado ao fogo do carvão, a transmutação de quem tem por matéria-prima a sua alma.

Θ

Narcissus pseudonarcissus

Na parte final de Viagem a Granada, volume VI das Obras Completas de António Telmo, encontramos um conjunto de poemas de juventude intitulado “Narciso”. Figura nele, como no mito de Eco e Narciso, um espelho. Espelho tal como aquele que se oculta sob uma cortina, quando, no Rito Florestal, o ainda Aprendiz, numa das suas viagens no Templo, é deixado em frente dele para que leia a máxima:

“Se o desejas verdadeiramente, se tens coragem e inteligência, afasta este véu e aprenderás a conhecer-te”.

Frente ao espelho, ordena o Vigilante:

“Vede-vos então tal como sois”.

Será isto possível? – pergunto eu. Será possível vermo-nos como somos? Eu creio que uma tendência extrema será a de Narciso, a de se ver tão belo que inevitavelmente se abismará na paixão por si mesmo; outra será a de se ver um monstro, tão horrendo que razão tem a máxima em exigir coragem ao candidato para enfrentar a visão de si mesmo.

É possível que alguns sejam capazes de se observar mantendo o equilíbrio da balança, porém eu penso que a maioria não retirará consequências da experiência especulativa, isto é, julgo que raros somos capazes da total autognose, pois é disso que tratamos: do Nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo, próprio de qualquer iniciação.

A autognose manifesta-se na Viagem a Granada, quando o narrador, numa cena de grupo, se agarra ao braço de um dos presentes. Não é preciso recorrer a dons hermenêuticos para descobrir o que o próprio autor revela, no final da narrativa de viagem, quanto ao valor mágico dessa personagem identificada apenas como X. X é habitualmente a incógnita, aquele a quem se pode perguntar: “Romeiro, romeiro, quem és tu?”

Vejamos um excerto de Viagem a Granada, página 89, em que deparamos com uma situação especular dupla -, não por a personagem ser um duplo do narrador, e é – mas porque, se o narrador a observa e pretende conhecer-se nela, a personagem também usa o narrador para fins de autognose. Digamos que o autoconhecimento tanto se exerce de mim para a imagem refletida no espelho, como da imagem para mim.

A imagem especula, reflete, o que é absolutamente próprio dela, mas nós não costumamos dar atenção ao facto de que estes termos, especular e refletir, referem as mais elevadas operações mentais. Menos ainda pensamos que, se dizemos que o speculum reflete/pensa, estamos a criar uma ação poética em que também somos personagens. Vejamos então a imagem no espelho a querer conhecer-se, observando quem se pôs à sua frente:

“Daqui a irritação que os pensamentos, as palavras e os actos de X causam em mim, nos frequentes períodos de convívio entre os dois. Todavia de ele para mim é igualmente consciencializável uma perspectiva análoga de autognose. Eu segurarei o seu braço e segurar-me-ei ao seu braço até ao dia em que a árvore floresça”.

O núcleo mágico desta narrativa é a transformação de um tronco seco numa videira florida, e com isto teríamos a imagem do carvoeiro, o habitante da Floresta, como árvore, e realmente é-o, na sua dimensão simbólica.

Nos poemas “Narciso”, tal como no mito, vemos Narciso, a linda flor solar, à beira de água, e também o vemos a correr pelos montes. Considerar bucólica esta lírica era ficar pela superfície de uma grimpa que o Rito Florestal manda podar. Quando, “Num caderno de apontamentos”, logo ao início, Telmo explica que o seu pressuposto de que o amor, e uso palavras minhas, o amor com distância física entre amador e coisa amada é a saudade, e que a saudade do que está fisicamente próximo é amor, quando ele diz que esta asserção se mira ao espelho, não está simplesmente abismado na sua imagem narcísica, antes exprime um dos veios mais salientes da sua filosofia. Acrescentaria os termos ou anjos hebraicos que Telmo atribui à saudade e ao amor, Shekina e Metraton, acontece entretanto que a Kabbalah não é ramo da árvore dos meus conhecimentos.

Então, se nos aparece uma flor identificada  pelos botânicos com o nome de Narcissus pseudonarcissus, é proveitoso atentar no que terá acontecido à espécie para ser considerada pseudo-, falso narciso; sem me afogar na Botânica, refiro apenas, por curiosidade, que Telmo fala de uma flor rubra, quando o Narcissus pseudonarcissus, vulgar narciso, exibe a cor da Estrela Flamejante, enfim, representa o Sol dourado. Depois, Telmo, nos seus versos, tanto não está a falar do mito que até se esquece da ninfa Eco, essa que lhe devia merecer artigo especial, pela sua proximidade com a matéria linguística: Eco tinha sido castigada por Hera com uma patologia da fala: a única coisa que conseguia era repetir últimas sílabas. Ovídio, nas Metamorfoses, diz que a ninfa Eco era aquela que não sabia falar em primeiro lugar, que não conseguia calar-se quando se falava com ela, e que repetia apenas os últimos sons do que ouvia. Telmo ignora a ninfa, tal como parece ignorar a carga simbólica atribuída pela Psicanálise à obsessão de se ver ao espelho. Com esses poemas de juventude, o autor começa a desenvolver um filão próprio, que o perseguirá até ao fim, o da especulação filosófica, centrada na questão da autognose, que o transportará para o seio da Filosofia Portuguesa, com o tema da saudade como memória.

E neste ponto podemos inventariar largamente as imagens e situações que a ele são necessárias para abismar os olhos no seu reflexo à superfície do espelho. Naturalmente, faz-lhe falta o outro, não uma outra pessoa, faz-lhe falta ele mesmo, ele como duplo, imagem especular ou simplesmente interlocutor, como é próprio do filosofar dos clássicos, em que existe sempre mestre e discípulo em situação de diálogo, ou de ensinamento secreto, praticado de boca a orelha entre Mestre e Aprendiz. É assim que surge o seu alter-ego Tomé Natanael, nome anagramático, é assim que surgem situações diversas de alteridade que se manifestam em textos como Os Dioscuros. Neste conto, de dupla alteridade, encontramos dois irmãos gémeos casados com duas irmãs gémeas. No final do conto, finda a especulação, reduzem-se, de quatro entidades, a apenas duas, ele e ela. Muito mais situações de dupla, emparelhamento ou confrontação com o espelho poderíamos encontrar, como acontece com a tourada, o jogo de poker e a caçada.

Não é indolor o autoconhecimento, pelo contrário: o mergulho pode infundir terror, porque quem se põe ao espelho ignora o que vai encontrar na profundidade da água. Daí que, em “Narciso”, Telmo fale de abismo:

Mas disse o adivinho: “Triste de Narciso

Se algum dia de si se dói de amor!

Cai na sua sombra: Um abismo!,

Amará a flor: será a flor.”

A sensação de se descobrir no reflexo é a de queda, e pode ser queda no abismo. No poema 3 da série, encontramos, como noutros, uma jovem que não é Eco, e por isso Telmo lhe chama sucessivamente “Gioconda ou Ofélia, linda Ondina”. Nesse poema, Telmo dá a imagem mais óbvia do que se procura com o espelho, o conhecimento da alma, mas não fica absolutamente claro que se trate de autognose:

“Narciso tem sede. O sol assim

Tem sede de ágoa clara e vai beber

Nos lábios dela muito amor.

Assim eu, às vezes, ai de mim!

Vou beber na minha alma, fonte pura!”

A enumeração de figuras femininas, logo a seguir, deixa perceber que a alma devolvida pelo espelho não é tanto a própria, antes a amada, o que nos deixa, depois de Narciso sem Eco, com outro belo mito de amor, o de Eros e Psique.

“Narciso” é um grupo de poemas antigo, o autor era muito jovem quando os escreveu. Entretanto, já por essa juventude trasladada para o papel vemos aflorarem os temas mais importantes da filosofia de Telmo, que são afinal temas da Filosofia Portuguesa. Vejamos um extrato do poema 5 para comprovação:

“Cresce o Narciso, rubro como o poente;

Sobre a face da ágoa se inclina

E nos seus olhos vê linda menina

Toda coroada como uma maçã,

A mesma que na edénica manhã

Foi trincada pelos dentes brancos de Eva,

A mesma Eva que Adão fez da sua treva.”

Eis-nos no Éden, no preciso momento da ação que levará à expulsão, por isso o desejo, por isso a saudade, por isso títulos como Regresso ao Paraíso, de Pascoaes, que fará eco na Filosofia Portuguesa, com Leonardo Coimbra a servir de espelho a António Telmo no debate desta matéria.

No princípio da obra literária, tal como no ab initio de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra, temos o saudosismo. Saudade que se garante ser memória. E de quê? Memória desse tempo feliz anterior à expulsão, em que Adão e Eva viviam felizes no Paraíso.

No Rito Florestal, como certamente noutros, apraz-me interpretar a sequência do ataúde como análoga ao regresso ao Paraíso. Os carvoeiros e lenhadores precisam de abrir uma árvore que encerra o ataúde de onde Osíris, ressurreto, reinicia o seu ciclo de eterno retorno. O Sol renasce, sai das trevas e regressa à Terra, inundando-a com a Luz que dá vida e com a sua vida eterna.

Θ

Ay flores

No tema recorrente da autognose, em António Telmo, não é apenas o narciso, no campo das flores, a manifestá-la. Logo na abertura do primeiro dos «Diálogos de Thomé e Natham», aparece o mandamento “Conhece-te a ti mesmo”. Os dois nomes remetem para o anagrama de António Telmo, Thomé Nathanael, de modo que, nos diálogos, dividido o nome em dois interlocutores, ficamos mais uma vez com uma situação de tipo narcísico, com o sujeito a tentar conhecer-se através da imagem. Diz Thomé:

«Eis-nos finalmente em frente um do outro, como os dois cotilédones em que se dividiu, da treva para a luz, a maravilhosa semente, o misterioso logos espermático que é o pensamento de Thomé Nathanael».

«Logos espermático» é uma criadora expressão, que mistura o sexual com o intelectual no cadinho poético. Na filosofia de António Telmo, o que prevalece quer sobre a filosofia quer sobre a poesia é o fruto das bodas alquímicas de ambos, isto é, uma filosofia que sonha, e uma poesia que pensa. Sintetizando, como híbrido criado pela fusão, surge a razão poética, para a qual Pedro Martins tem chamado a atenção, enquanto fundamento da filosofia de António Telmo.

No caso do logos espermático, a razão poética foi ao Reino Vegetal buscar a imagem da técnica do autoconhecimento, que precisa sempre de um espelho que crie o interlocutor. Em Telmo, o interlocutor é quase sempre ele mesmo, sob forma de personagem especular, anagramática ou ficcional.

Bem integrada no espaço florestal, a imagem poética a abrir os “Diálogos de Thomé e Natham”, é a dos dois cotilédones em que se dividiu o pensamento para se desenvolver como nova planta. Dois cotilédones levam a pensar na clonagem, processo comum de reprodução assexuada no mundo vegetal e animal, mas que nos vertebrados só se conhece como fruto do engenho humano, no século XX. Telmo fala disso no texto “Os Dioscuros”, em que contracenam dois pares de gémeos. O autor refere que o conto nasceu da necessidade de confrontar gémeos naturais com clones; à data de redação, andava no ar o polémico assunto da ovelha Dolly, obtida por clonagem. O clone, vegetal ou animal, como é fruto de um e não de dois, é uma réplica perfeita do dador da célula original, réplica desfasada no tempo, como sucede entre mãe e filho. Tratando-se de vários clones da mesma matéria biológica original, seriam todos iguais. Os gémeos, mesmo perfeitos, são sempre diferentes entre si, e diferentes dos clones, porque resultam de reprodução sexuada, são fruto de um par de seres, macho e fêmea. Na reprodução por partenogénese, nas populações animais em que ocorre (de certas espécies de rãs, por exemplo), todos os indivíduos são fêmeas, iguais à mãe, e por isso provavelmente todos são iguais entre si, a despeito de cada girino se desenvolver a partir do seu próprio ovo. No conto de Telmo, parece que a igualdade dos gémeos é igual à dos clones, uma vez que se verifica a redução de quatro a dois, sobrando apenas um casal.

Na verdade, a grande diferença entre clones e gémeos, no território do humano, aquela que invoca o parecer da Bioética, vem de que os clones são gerados sem pai nem mãe, com todas as implicações legais, éticas, sociais, culturais, psicológicas e outras que estes verdadeiros alienígenas levantariam para a sociedade e para si mesmos. A nossa sociedade é falocrática, organiza-se com base na família, daí em torno da identidade, algo representado por um bilhete de cidadão, difícil de conceder a um clone.

Este discorrer sem objetivo preciso acentua a estrutura do pensamento ou da poesia de António Telmo, em que se nota sempre a presença de pares e quase sempre de duplos que se enfrentam, à semelhança de objeto e imagem mediatizados pela contemplação do espelho. Clones e gémeos integram-se neste “logos espermático”, como ele diz.

Pode o espelho ser de vidro, líquido, gráfico, ou semântico e métrico como na cantiga Ay flores do verde piño, de D. Dinis, e Bailemos nós já todas tres, ai amigas, na bailia  de Airas Nunes de Santiago. Para lá de a estrutura de cada uma fazer com que se espelhem assuntos, partes, estrofes, versos e sonoridades, António Telmo fá-las espelharem-se uma à outra.

A questão das flores do pinheiro e da aveleira de há muitos anos me acompanha como enigma até agora sem solução. Considero acaso objetivo, ou misteriosa concidência, o facto de serem só essas duas cantigas que nos levantam, a Telmo e a mim, problemas de hermenêutica. Em artigo publicado na revista Incomunidade, cinjo-me à floricultura, já que a razão do mistério, para mim, incide nas flores: as flores do pinheiro e da aveleira são as únicas especificadas em mais de uma centena de cantigas em que busquei, em vão, em primeiro lugar as rosas de Santa Isabel, e depois outras, menos miraculadas mas igualmente reconhecíveis como flores pelos leigos na matéria. Porque nem as flores do pinheiro nem as da aveleira são facilmente identificáveis como flores, falta-lhes o espendor das pétalas coloridas. Então porquê só essas duas espécies crípticas de flor e mais nenhumas? – este é o meu mistério.

António Telmo refere que pinheiro e aveleira são árvores mágicas, árvores da sabedoria e do conhecimento. Não resolvendo o meu problema jardineiro, a informação resolve entretanto este artigo num final feliz, à boa maneira dos contos de fadas.

O amor não falta na obra de Telmo, de resto o seu título, A verdade do Amor, já o manifesta, se bem que esta peça de teatro se encoste mais à filosofia, e aos Fiéis do Amor, do que a uma singela história de amor entre duas pessoas. Se bem que pontual, discreta, existe uma veia erótica em António Telmo, seja ela direta, de apresentação de um casal em relação sexual, como acontece n’«Os Dioscuros», seja de desejo esparso por uma mulher ainda não fixada, como nos poemas de «Narciso», seja simbólica, como no caso vertente, em que revela o seu logos  espermático. A onde leva o esperma criador, veiculado pelos pinheiros e aveleiras, seres do mundo vegetal, a propósito dos quais melhor seria falar de pólen?

António Telmo, diferentemente de mim, a quem as flores desafiam, é desafiado pelas palavras, aquelas que aludem ao amigo ausente: Ai Deus, onde está ele? Onde está aquele que o meu coração chama?

Telmo, nesta análise, vai para onde eu não vou, o lugar do Encoberto. Mas de outro modo chegarei lá.

O messianismo é algo de muito profundo e alargado nas culturas mais diferentes. Espantei-me há muitos anos ao ler o livro “O messianismo Krahó”, messianismo patente à Antropogia entre índios do Mato Grosso. Nós politizamos demasiado aquilo que na base pertence à esfera amorosa. Com a minha vénia a Sampaio Bruno, a António Telmo e a todos os cabalistas, em vez de Messias e Encoberto prefiro mencionar o Desejado e a Desejada, aqueles que todos nós esperamos, o ar da nossa vida, redentor e exclusivo, mesmo que o tenhamos já encontrado. Sem rejeitar o Encoberto nem o Messias, declaro que no coração de António Telmo, tal como no nosso, lateja também este outro ser da lonjura e da esperança, o Amado por quem a amiga pede notícias às flores do verde pinheiro. É pois com o Desejo que vos deixo, agradecendo a vossa atenção.


LEITURAS

António Cândido Franco (2012) – “Da Renascença Portuguesa ao Regresso ao Paraíso”. Lisboa, Nova Águia  – Revista de Cultura para o século XXI,  N º 9 – 1 º  semestre. Nos 100 Anos da Renascença Portuguesa  – como será Portugal daqui a 100 anos?

António Telmo (2008) – A verdade do Amor. Seguido de Adoração – Cânticos de Amor, de Leonardo Coimbra. Sintra, Zéfiro – Edições.

António Telmo (2009) – Congeminações de um neopitagórico. Sintra, Zéfiro – Edições.

António Telmo (2010) – O Portugal de António Telmo. Coord. Rodrigo Sobral Cunha, Renato Epifânio e Pedro Sinde. Lisboa, Guimarães Editores.

António Telmo (2014) – A Terra Prometida. Maçonaria, Kabbalah, Martinismo & Quinto Império. Volume I das Obras Completas de António Telmo. Sintra, Zéfiro – Edições.

António Telmo (2014) – Gramática secreta da língua portuguesa. Precedida de Arte poética. Volume II das Obras Completas de António Telmo. Sintra, Zéfiro – Edições.

António Telmo (2015?) – Filosofia e Kabbalah. Seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos. Volume IV das Obras Completas de António Telmo. Sintra, Zéfiro – Edições. Em pdf de livro pré-editado, sem paginação nem ficha técnica.

António Telmo (2016) – Viagem a Granada. Seguida de Poesia. Volume VI das Obras Completas de António Telmo. Sintra, Zéfiro – Edições.

António Telmo (1963) – Arte Poética. Lisboa, Teoremas de Teatro, 76 pp. Sobre Bergson.

Jacques Brengues (1991) – La Franc-Maçonnerie du Bois – Protectrice de la forêt. Paris, Éditions Véga.

José Carlos Francisco Pereira – “Nota prefacial – O esquecimento do Paraíso” a Samuel Dimas (2014 ) – Regresso ao Paraíso . Estudos sobre a redenção do mundo .  Lisboa Universidade Católica Editora. 

Maria Estela Guedes (2017) – “Textos secretos de António Telmo”. Em Triplov.com Áudio: https://soundcloud.com/user-862422160/textos-secretos-de-antonio-telmo.

Maria Estela Guedes (2015) – “D. Dinis, Rei-Poeta”. Revista Incomunidade, nº 37. In: http://www.incomunidade.com/v37/art.php?art=45

Pedro Martins (2015) – Um António Telmo. Marranismo, Kabbalah e Maçonaria. Sintra, Zéfiro – Edições. Prefácio de António Carlos Carvalho.

Teixeira de Pascoaes (1986) – Regresso ao Paraíso. Introdução de Agostinho da Silva. Lisboa, Assírio e Alvim, 170 pp.

Teixeira de Pascoaes (1990) – Marânus. Prefácio de Eduardo Lourenço. Lisboa, Assírio & Alvim, 156 pp.