EM VIAGEM PELA "LITERATURA DE VIAGENS"
Annabela Rita
19-02-2004

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E outro arquipélago ainda?
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Apesar de muito distante, vislumbro sinais de outro território sobre o qual talvez seja possível dizer que usa a viagem como padrão de conhecimento em processo. Refiro-me ao filão da moderna divulgação científica de escola anglo-americana que procura tornar acessível um saber especializado através da narrativa da aventura reflexiva e experimental que lhe está na génese (1).

Folheemos alguns volumes, p. ex., da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva, nome bastante expressivo dessa estratégia de conquista de um público alargado. Os próprios títulos surpreendem e atraem: quem não sente curiosidade e, às vezes, familiaridade, perante O Sorriso do Flamingo ou Quando as galinhas tiverem dentes, de Stephen Jay Gould, ou O Nariz de Cleópatra, de Daniel J. Boorstin, para não multiplicar as referências? E, nos índices, essa curiosidade mais e mais se aguça...

Em vez de nos oferecer uma breve síntese científica, o investigador opta por nos contar como chegou ou se chegou a tais e tais conclusões, o percurso da observação-hipótese-conclusão, mas sem rasurar os obstáculos nem os retrocessos (hipóteses infirmadas): o raciocínio desdobra-se diante de nós clarificando as suas referências, as suas etapas, os seus sucessos e insucessos, as perplexidades, as suspeitas, as convicções e, por fim, as conclusões. O conhecimento “atópico” dá, assim, lugar ao conhecimento subjectizado, protagonizado, historicizado, condicionado por um eu-aqui-agora que o relativiza e que o humaniza. Aprendemos com e como o cientista: esclarecidas as razões da tese, ela naturaliza-se para nós, acalmando, até, eventual intimidação que qualquer um tenha perante áreas do conhecimento que lhe são estranhas, e atrai-nos para uma cumplicidade seduzida.

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Notas

(1) Sobre esta questão, cf. Annabela Rita. “Acerca do discurso da moderna divulgação científica”, Vértice (II série, 11), Lisboa, Caminho, Maio de 1989, pp. 69/72.
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