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ANNABELA RITA
Entre curva e traço

Hirto, avança na superfície lisa, deixando um rasto negro aparentemente volumétrico no seu brilho contrastivo. Sinuoso bordado gerado em oblíqua inclinação, ora espraiando-se, dilatado na vaga inspirada, ora surpreendendo pela minúcia do detalhe, hesitante às vezes, quase sonâmbulo, outras. Um fio de luz intensa ofende a claridade tépida daquele espaço e sugere-se fronteira para o negro que evolui. Ilusão: ele passa através. Mas o movimento suspende-se, como que retesando-se em escuta. Tudo, aliás, se interrompe nessa atenção.

A janela abre-se, quebrando o silêncio monástico. O fio de luz expande-se de imediato numa mancha irregular que contrasta com a área envolvente, qual foco no palco anunciando e evidenciando os actores em cena . Imóvel, a mancha parece esperar, expectante. E o aparo retoma com brusquidão o seu "ballet" de sombras, agredindo a lisura polida e levantando nela uma penugem quase invisível, inscrevendo a linha que progride entre curva e traço, enérgica, parecendo impelida pela repercussão de um eco, aquele. O movimento é agora febril já sem a plácida harmonia do início e a inscrição começa a dominar luminosidade e tepidez, excedendo os limites que a luz, simulava impor-lhe, alastrando, invasora. Ouve-se o roçar do tempo afagando o espaço, também episodicamente violento. Liquefeito, o momento faz-se absorver, penetra e entranha-se na epiderme desejada, alonga-se, sensual.

Depois, quanto tempo depois?, a aresta aguçada comprime o branco num ponto onde todo aquele universo parece concentrar-se, sintetizar-se, num beijo letal. Um segundo, dois... e ela afasta-se.

A mão eleva as folhas e oferece-as ao olhar. Ao lado, a caneta repousa, adormecido o aparo no casulo da tampa, por fim, invisível.

Na página agora igualmente iluminada, a regularidade das palavras acentuada pelo reflexo que vai secando no negro caligráfico começa a esquecer a febre da escrita. No rectângulo semi-baço, paira a memória da vida que o habitou, do grito que o agitou e fantasmiza.

 

Annabela Rita
18 de Março de 1999