Anatomia do ócio, de R. Leontino Filho

MARIA ESTELA GUEDES
Poeta, ensaísta, dir. Triplov


Eis a primeira pergunta que faríamos a R. Leontino Filho, a propósito do seu livro de poemas intitulado Anatomia do ócio: Poesia é sinónimo de ócio?

O miolo das variações, sem licença

Poesia implica um tempo privilegiado, o tempo em que não existe a preocupação nem a pressão do negócio. Implica igualmente, neste livro, uma maneira lúdica de lidar com o verbo, assinalando eu a mestria com que se lança a língua portuguesa no campo de jogo. Mestria própria de grandes escritores, a negar que existam duas ou mais línguas chamadas Português. Não, existe o bom e o mau português, cá e lá. Não sabendo de antemão que R. Leontino Filho é brasileiro, Anatomia do ócio passaria por livro de um poeta nascido em Portugal.

E porque o tempo da poesia é sagrado como o do templo, o da magia, o da comunicação com os deuses e figuras míticas, Leontino Filho comunica com eles quando escreve os seus poemas. É assim que um dos aspetos mais evidentes do livro se traduz na ausência de elementos endóticos, brasílicos, esses fundamentos de uma literatura que a modernidade dos  anos 20 – Oswald de Andrade, por exemplo, com o Manifesto da Poesia Pau-Brasil – apelidou de primitivistas e nacionalistas.

Na nossa modernidade, século XXI, R. Leontino Filho prefere experimentar, prefere o laboratório, em suma, aquilo que aproxima as letras das imagens, desenhando na página com os poemas, e aquilo que na poesia é comum à música, caso mais evidente das repetições e das toadas próprias do romance, poema narrativo de vínculo popular. E existem ainda os textos que aliam o visual ao oral, como “Rota”, no qual todos os versos se iniciam por “Há os que”, metade seguindo com “seguem” e a parte final com a negação. Cito o primeiro e último versos: “há os que seguem o amor por luas, e não são felizes”// “há os que negam por negar, e minguam, esses não”.

Se bem que os procedimentos referenciais do autor tendam para uma poesia discreta, secreta, que não se interessa por tornar identificáveis os acidentes da realidade comum, por vezes o autor fica muito familiar nosso ao dar conta dos seus afetos, o que nos deixa na presença de belos poemas de amor, como “Dentro da noite penso em ti”. Este texto finda com uma alusão que nos obriga a dar atenção ao termo “medieval”, uma vez que à aparente simplicidade e pureza destes poemas não é estranha a leitura da lírica trovadoresca:

Volta e meia

o amor perturba o sono descontente das estrelas

e o luar embaraçado

por tantos murmúrios

arma a provisória tenda da paixão:

O meu olhar de neblina

costurado na memória

tece a infância medieval

do teu corpo.

Faz parte ainda da experimentação o texto elaborado à maneira barroca, e aí já se trata de “Ofício”, título do poema, de ser um bom oficial das letras, mais do que negá-lo com o ócio. Neste poema, cujas estrofes se iniciam todas da mesma maneira, pelo desejo de abraçar, os últimos três versos começam sempre pela mesma letra:

os braços descrevem a dádiva da carne:

                              comprimem

                              suspiros

                              sopros

                              soltos

Temos então como referências condutoras da atenção do leitor as exóticas, aquelas que remetem para o clássico, em especial a cultura greco-latina, com os seus deuses e heróis, os seus Prometeu e Ulisses, e uma poesia de amor a que não falta o pranto de despedida de Eneias ao afastar-se Dido, rainha de Cartago: “Elisa, Elisa!”, lamenta o herói. Rodeada pelo léxico alusivo às civilizações do Mediterrâneo, à presença  dos navios e da viagem, essa Dido/Elyssa surge, sob o nome de uma possível jovem do nosso tempo:

Na pele de Elisa, se exaurem

Afrodite em necrosada ofensiva contra Erímanto.

Na pele de Elisa se desequilibram

Narciso impassível, Prometeu impertinente, Sísifo

        intranquilo.

Fluindo como um navio no Mediterrâneo, carregado com as preciosidades de uma cultura milenar, mencione-se a propósito um dos últimos poemas, o belíssimo “Âncora leve”, este livro merece um louvor também ao editor, Floriano Martins, que aliás assina o prefácio e os grafismos, pela beleza e boa qualidade da edição.

LEONTINO FILHO
Anatomia do ócio
Prefácio, grafismo  e imagens de Floriano Martins

ARC Edições, Brasil/Fortaleza, 2018