O LUGAR DA MEMÓRIA
NA COMUNIDADE CIENTÍFICA E MUSEOLÓGICA ACTUAL


SÍNTESE

As Academias escolhem perpetuar-se por meio de Memórias
À Ciência, a memória reconhecida
Crise da memória na comunidade científica actual?

Com origem latina transmitida pelo étimo memor, oris - que se lembra, que se recorda, que adverte, que traz à memória, reconhecido, grato - e memoria, ae - memória, lembrança, reminiscência, tempo passado, tradição -, a palavra "memória" tem como sinónimos: lembrança, linhagem, registo, tradição, es(ins)crita, acepções que se encontram incorporadas no processo das ciências modernas.

Para situar a função e a representatividade da memória na comunidade científica actual, convém começar por descrever como é que elas intervieram historicamente, focando nomeadamente o modo como foram emergindo; seguidamente, passar a circunscrever as mudanças mais significativas ao longo deste processo, sem esquecer as demarcações susceptíveis de importância, para se possibilitar um pronunciamento fundamentado, quando se pretende caracterizá-las dentro da configuração epistemológica que nos permite pensar.

É preciso também inseri-las na desconstrução que a categoria do tempo, aproximado do instante, e a categoria do espaço, equiparado ao próximo, estão a sofrer, por meio de mecanismos inerentes ao impacto tecnológico e ao fenómeno da globalização.

A tradição e a memória individual ou colectiva (social) dos cientistas e museólogos, tema que inclui as influências intervindo na construção da identidade e da cultura inerente ao que pensam e fazem, engloba ainda como o seu conhecimento se (re)produz, com destaque para as metodologias. Por outras palavras, os meios onde os cientistas e museólogos contornam e são contornados pela memória, as fronteiras, margens e pontes dos mecanismos de troca nas ciências, e como actuam nelas os termos sociais e culturais da vertente histórica (1).

As Academias escolhem perpetuar-se por meio de Memórias

Quando se avalia a capacidade de o conhecimento se revitalizar em extensão, o que contribui para o seu estatuto em termos de cultura, verifica-se que a modernidade juntou meios adequados para impor um estado organizado, um exército disciplinado e uma elite intelectual centralizada.

Para isso muito concorreu um primeiro termo da estrutura, a razão elevada a representatividade sem par, e um segundo termo, o sujeito, alcandorado a vigilante permanente. As ciências, essas, ocuparam o terceiro termo, também fundamental, como escopo por excelência do sistema.

Neste contexto, as academias assumiram uma função primordial, pois coube-lhes contribuir para uma transformação forte. Na verdade, foram elas que reuniram as pessoas e os meios disponíveis para favorecer a emergência das ciências modernas, a partir do século XVI, com auge no século XVIII.

Desde o início apoiadas pelo poder económico e político, estas instituições apresentaram características bastante variadas. Com o tempo, percorreram vias de desenvolvimento não uniformes, incluindo fases de apogeu ou decadência. Mesmo assim, pode dizer-se genericamente que, não só estruturaram lugares próprios para uma comunicação efectiva de problemas, hipóteses e resultados, como também ajudaram a dinamizar meios de reconhecimento e profissionalização para muitas disciplinas. Permitiram, finalmente, formas de controle governamental sobre o mundo literário e científico.

Com elas, principia, pois, um processo prolongado, onde toda a modernidade faz os seus elos: as diferentes formas de conhecimento começam a ser modeladas, aferidas e legitimadas segundo os critérios impostos pelas ciências, enquanto inteligibilidade criativa - experimentos, produção - e inteligibilidade transmitida - ensino, reprodução.

Conhecer é saber-observar e saber-experimentar, em termos reais.

No que respeita o caso individualizado das academias científicas, destaque-se o seu grande papel na implementação do experimentalismo. Esta afirmação merece um esclarecimento, numa tradição como a nossa, e vai ver-se porquê. O experimentalismo não equivalia a qualquer desconhecimento da importância da teoria na produção científica. Muito pelo contrário. Na verdade, os laboratórios existentes ou as sessões públicas, quando se divulgavam efeitos mais espectaculares, eram apoiados em trabalhos teóricos de grande qualidade. No caso português, porém, verificou-se uma situação própria.

Para além de outros factores que devem ter actuado, o certo é que, apesar de muito valiosa, a reforma pombalina - movimento definindo-se pelo seu lado contra..., com uma natureza particularmente antiespeculativa e anti-reflexiva - permitiu uma mentalidade alimentada por um obstáculo epistemológico generalizado: toda a especulação é asfixiante para o saber, toda a teoria equivale a especulação, logo, toda teoria é desnecessária. Ou, no mínimo, inoperante.

Certamente também por isso, nasceu uma primeira geração na Real Academia das Ciências de Lisboa com características marcadamente práticas e aplicadas, e com manifesto desprezo pela teoria. Se é verdade que este aspecto facultou trabalhos notáveis muito ligados a problemas concretos, como sejam os diversos inventários sobre os recursos do reino, o facto é que lhes retirou uma das vertentes fundamentais da ciência moderna, com prejuízos futuros. Lembre-se a nossa vulnerabilidade na adesão e arrastamento das teses positivistas.

A seu modo, a configuração geral facultava novos conteúdos para a intervenção social da memória. Os poderes públicos e privados investiam em bibliotecas, colecções e torres do tombo. Mais ainda. Em face dos antigos, cuja memória era criticada ou pelo menos desvalorizada, os modernos, ciosos dos seus adquiridos e sucessos, sentiam necessidade de criar, a partir deles próprios, canais para difundirem a lembrança de si.

No caso das academias, o mecanismo foi particularmente significativo. O trabalho com valor digno de ser lembrado, pelo que apresentava no presente e pelo que representava como exemplo(ar) para ser lembrado no futuro, tomou o nome genérico de Memória, pelo que as suas publicações são frequentemente designadas assim.

Além disso, exercitavam-se no Elogio do candidato a sócio ou do sócio falecido. Escolhendo sessões específicas, o colectivo dos académicos vincava os sentimentos de homenagem, complementados por publicações, onde mostrava (re)conhecimento. Por elas, dizia-se com conhecimento de causa sobre as qualidades dos pares, de quem reconhecia o justificado valor. Paralelamente, difundia (con)tributos, ao reiterar quanto a instituição em particular e a sociedade em geral recebera deles contributos importantes, obrigando-se a tributos públicos. Muitas destas tradições foram perdurando, até hoje.

Acrescente-se ainda que não deve ter sido sem significado que a árvore enciclopédica das ciências, das artes e dos ofícios, proposta pela Encyclopédie, inclua os ramos seguintes: a razão (filosofia), a memória (história) e a imaginação (belas-artes), identificadas com as três divisões do sistema figurado e com os três objectos gerais do conhecimento. Na verdade, cabe-lhes a honra de serem escolhidas como ramificações primeiras de um tronco comum robusto - o entendimento -. Paralelamente, é óbvio que concorreu para o ajoeiramento do que merecia ser lembrado, utilizando canais de comunicação tais que os resultados conseguidos, pela dinamização de Diderot e D'Alembert, foram a pedra básica do modelo de globalização, por onde o fim do século XVIII apostou com investimento e muita energia.

À Ciência, a memória reconhecida

Observem-se três acontecimentos significativos ocorridos na cidade de Paris, à época capital cultural do mundo, entre uma monarquia decadente e um espírito revolucionário já distante:

Edificação da nova Église de Sainte Geneviève, 1755 a 1790 - Construção concebida por Soufflot: plano em cruz, vasto pórtico, cúpula imponente. Estruturas góticas tendendo para a grandiosidade grega. Capacidade arquitectónica em termos de volumetria com cheios e vazios.

Criação do Conservatoire des Arts et Métiers, 1830 - Estruturação de um espaço expositivo enaltecedor, com destaque para o contributo benéfico dos produtos manufacturados em prol da felicidade do género humano. Realidade conseguida, na sequência de uma proposta anterior, elaborada pelo Abbé Grégoire (1794), que defendia a utilidade de preservar colecções das artes mecânicas e propunha meios eficazes para se difundirem e patentearem invenções.

Edição do Cours de Philosophie Positive, 1830 a 1842 - Publicação em 6 volumes da grande síntese concebida por Auguste Comte. Obra reveladora de uma visão de conjunto, marcadamente coerente e articulada, submetendo a organização dos capítulos à hierarquia das ciências.

A vontade de afastar o Ancien Régime não impediu a Revolução Francesa de ir buscar ritos e símbolos ao passado. Para isso, explorou os objectos históricos com mestria, ao consignar o encontro entre a sua instituicionalidade político-social e as regras que ela institui, nesta frase lapidar do Panthéon: "Aos Grandes Homens, a Pátria Reconhecida".

A vontade de inovação por parte do aparato industrial não obstou a que a elite mais esclarecida deixasse de guardar, conservar e mostrar, genealogias de ferramentas, máquinas e aparelhos.

A vontade de questionar a filosofia anterior, considerada caduca porque metafísica, não inibiu o positivismo de responder à necessidade de mitos, jogando forte em favor do mérito obtido através de avanços científicos e apelando para mecanismos construídos com base num fascínio desmedido, pautado pelo desenvolvimento para melhor. Adaptado como poucos sistemas mentais à época onde nasceu, por ser o mais consentâneo com a Segunda Revolução Industrial, este ideário consubstancializou realidades pertinentes, serviu de propaganda a sonhos genuínos e fez propostas que traduziam, em termos ideológicos, um estado de espírito consignado pela prática social vigente. Daí que o seu maior mérito (e, por certo, a sua maior fragilidade) advenha, precisamente, do modo como foi ajustado e hábil, ao expressar virtualidades, desejos e dinâmicas que borboletavam à sua volta.

Em ciências, conhecer é saber, prever e poder.

Logo, gerou-se uma sequência tripartida entre os elos seguintes: o domínio da natureza imprimia a transferência do sagrado para o campo do desenvolvimento sem fim; a tradição servia uma memória dinamizada pelo sentido do melhor; e a razão, expressão bem sucedida nomeadamente nas ciências e técnicas, dava coesão a tudo.

O progresso estipulava, também, as suas festividades por excelência: Londres (1851, 1862), Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900), Porto (1865), Viena (1873), Filadélfia (1876), Barcelona (1888), Chicago (1893), Bruxelas (1897). Na verdade, as exposições universais do século XIX demonstravam como a utopia exigia cidades ideais, concebidas no melhor dos mundos. Identificavam ainda estes acontecimentos ímpares a festas do trabalho, das ciências e das técnicas, procamando-as com inaugurações pomposas e cerimónias faustosas de encerramento.

Além disso, coroada pelas artes, a mensagem museográfica das ciências associava o útil ao bem-estar social, fundamentais para a felicidade do género humano, ligando-os por uma estética com escopos intelectuais, da engenharia à arquitecura do ferro, da literatura fin de siècle à art déco. Ao mesmo tempo, os avanços da indústria introduziam uma nova ordem económica, a juzante do crescimento tecnológico, apoiando-a no uso extensivo das máquinas e no emprego de uma série de métodos inovadores. Esta ordem nova dominava os espíritos e deixava estigmas inexoráveis nas formas e conteúdos.

Com o condão de tornar a novidade obsoleta pouco tempo depois, a fé num progresso permanente e inexorável das técnicas - e, por arrastamento, das ciências - surgia como factor epistemológico determinante, onde a ideologia se exprimia à vontade, por mérito da sua mensagem publicitada. Defendendo uma história cumulativa, dentro de um desenvolvimento orientado e sem cesuras de maior, a legitimação pelo futuro dominava todos os quadrantes mentais. E tinha fundamentos para isso. Porque os sucessos rebentavam em cadeia, uns atrás dos outros. Era a electricidade, o telefone, o telégrafo, a rádio, a fotografia, os cabos submarinos. Era uma imprensa mais dinâmica, acompanhada por correios e transportes mais rápidos.

Estes meios, nunca dantes suspeitados, começavam a favorecer a popularização das descobertas científicas e das inovações técnicas. Assim, os discursos disciplinares fundadores e os fenómenos científicos ligados a nomes passavam a ser ouvidos por várias partes, contando com mensagens eficientes, difundidas em maior escala.

O mundo pasmava com tanto avanço! E o discurso memorial do mundo científico-tecnológico engrandecia-se com razão, através de actos que, muito embora recentes, não deixavam de ter magia. Mais. Pela primeira vez, a memória científico-tecnológica passava a retirar bons efeitos da motivação exemplar e do fascínio exemplicativo, conseguidos pela proximidade no tempo e no espaço.

Todavia, sendo uma memória muito mais curta do que as anteriores, não conseguia poupar os lugares desactualizados, os livros ultrapassados e o equipamento obsoleto, ao sótão do seu esquecimento. Microscópios em desuso. Balanças em mau estado. Armários de laboratórios antiquados. Listas antigas de material. Revistas velhas. Muito disto tudo foi destruído ou deixado ao abandono, em nome do progresso sem fim.

Nessa altura ainda, o processo invasor da curta duração, do passageiro, do evanescente começou a balbuciar os seus sucessos. Não sem ambiguidades. Porque persistem expressões de outros sentires, qual resposta para uma eternidade que se procura, mesmo quando a sensação de eternidade perdida domina o quotidiano, e quando a solidez e durabilidade do avanço significa fuga concreta para superar o transitório ou volátil.

Quando se tenta perceber o fenómeno da destruição dos pavilhões, que fizeram parte das grandes exposições ao longo do século passado, parece óbvia uma das facetas mais gritantes de uma tendência a questionar. Se é verdade que a arquitectura materializa a intenção de resistir à voracidade do totalmente corruptível ou alterável, e mantém a tradição da cidade organizada para ficar, como foi que essa destruição aconteceu?

Apesar da natureza perecível de certos materiais justificar parte do fenómeno, o carácter efémero das exposições universais lucra de ser submetido a uma reflexão de tipo epistemológico. Se for ligado à fé num crescimento permanente e inexorável das técnicas, e por arrastamentos das ciências, percebe-se como esteve dependente de factores mais gerais, com o condão de tornar a novidade obsoleta em pouco tempo.

Na verdade, a crença na ordem e no progresso fez-se acompanhar de um descrença não menos forte: o património expositivo, como aconteceu durante os primeiros anos, foi erguido na malha centenária das cidades, equivalendo, por isso, a um obstáculo incómodo para qualquer mudança: os novos modelos de urbanismo exigiam alterações rápidas ou até radicais; o dimensionamento alargado de avenidas ou praças determinava que se não ficasse preso ao remanescente.

À mistura, outras manifestações aconteciam, como é o caso do primeiro interesse pela História das Ciências e Filosofia das Ciências. Apesar de enfermarem dos limites epistémicos da época que as viu nascer, foi nessa altura que estas tendências irromperam. Vêm ao serviço de uma memória cumulativa do conhecimento, num tempo linear, sem rupturas, onde as perdas seriam sempre diminutas e onde o impulso algébrico dos adquiridos mereceria o epíteto de tradição a perdurar. Berthelot, Dumas, Comte, Engels deixaram testemunhos de como havia quem sentisse a necessidade de uma cronologia e de uma gnosiologia das ciências. O conhecimento científico por ser processual, logo organizado segundo lógicas específicas, requeria um estudo atento, como contrapartida ao esquecimento, diziam.

Conhecer é integrar uma temporalidade contínua, com muitas descobertas e sucessos.

A secularização moderna gerou muitas novidades emergentes, havendo uma que teve particular alcance para as modalizações da memória colectiva, que fica cada vez mais ideológica. Trata-se da tomada de consciência, por parte dos governos, sobre o que (não) é desejável que os cidadãos saibam ou ignorem. Assim, sendo importante assumir uma posição definida, passa a ser da competência do Estado, zelar explicitamente, e em maior escala, pela orientação global dos canais formativos, o que deve ser conhecido e lembrado ou o que deve ser desconhecido e esquecido, segundo ditames emanando dos seus próprios deveres e, por isso, responsabilizando os governantes.

Por outras palavras, as sociedades foram percebendo, progressivamente, que a instrução teria de ser alargada, em extensão e compreensão. Se isto surgia como factor positivo em questões de eficiência, era usado, igualmente, com impactos vários na propaganda política. Com uma rede mais ampla, o sistema educativo, atingindo pessoas ao longo de um período maior, passou a ampliar o alcance do testemunho, veículo adequado para passar a tradição durante as aulas ou dentro dos tratados e manuais. Fosse pela oralidade ou pela escrita, fosse de modo pormenorizado ou mais sintético, a escola assumia a sua quota-parte como transmissora da memória. A evocação mostrava, pois, uma funcionalidade que só seria supérflua, na medida mesma em que servia objectivos estruturantes do conhecimento.

A partir do início do século XX, algumas coisas principiaram a mudar, ainda que lentamente: a legitimação de preservar começou a definir-se mais, certas alterações favoráveis ao regime da memória começaram a ocorrer. O futuro tornava-se menos visível, com alguns rompimentos, caminhando para afastar resquícios de qualquer tipo de princípio orientador e de sentido explicativo hegemónico.

Sem hiatos, crises ou rupturas, o mundo das ciências traduzia, a seu modo e com mais impacto, efeitos desta situação. Pertencer à escola de..., ter tido como mestre..., ter sido convidado por..., ser discípulo de... representavam sintomas de linearidade, integração numa linhagem, pertença a uma família. Logo: reconhecimento reiterado, situação pessoal individualizada, prestígio social e até promoção profissional. Diga-se que estes sintomas eram acompanhados de signos e sinais que materializavam formas de estar, de onde a comunidade científica retirava confiança para o presente e estímulo para o futuro, mediante várias marcas.

Marcas visíveis no tempo dos gestos colectivos. Estas marcas traduziam-se em acontecimentos de celebração, das comemorações, às homenagens e aplausos, usando o exemplo como paradigma a imitar. Definiam-se modelos que faziam parte de uma discursividade onde o país de origem, a influência do ensino, a educação recebida, as instituições frequentadas faziam parte de qualquer bibliografia, mesmo quando sintética.

Marcas visíveis no tempo das vivências íntimas. Na época, quem não se deixou influenciar pela imagem persistente de Louis Pasteur - alsaciano distinto, católico praticante, filho irrepreensível, pai extremoso, marido perfeito, qual coração batendo ao ritmo do mundo - que os livros de ensino do francês repisavam, sempre adaptando os conteúdos às faixas etárias dos alunos? E qual terá sido a mulher que, em fase de doutoramento, não se lembrou (e da lembrança retirou uma qualquer mística), do exemplo da polaca Marie Sklodowska, para gáudio da França, Curie por casamento?

Marcas visíveis no espaço exterior. Na toponímia das cidades - Avenue Gay-Lussac e ruas limítrofes no Quartier Latin, Plaza Marañon na Castellana e Plaz Zeiss em Berlim - estavam lembradas as celebridades. Nos lugares evocativos - monumentos, estátuas, memoriais, lápides, inscrições - eram deixadas as suas inscrições. Alargando a análise, verifica-se que, neste clima geral, os edifícios destinados às práticas científicas, nomeadamente complexos universitários ou laboratórios de estado construídos de raiz, eram planeados e dispostos na malha urbana, através de formalismos arquitectónicos com dimensionalidade e volumetria. Dimensionalidade e volumetria requeridas pelas funções de prestígio. No contexto global da cidade e da cidadania democrática, coube-lhes preencher pontos nevrálgicos entre percursos de poder. Se tivessem a dignidade clássica ou neoclássica, tanto melhor. Lembre-se o M.I.T, a Columbia University, a École Polythécnique, o Imperial College, a Reitoria da Universidade de Lisboa.

Marcas visíveis no espaço interior. Numa parede imponente do átrio de acesso, numa estátua ao cimo da escadaria, numa lápide destacada e pomposa, ou, até, em cima de uma porta particularmente alta, nomes próprios gravados e frases célebres recordavam homens de ciência e descobertas científicas a não esquecer. Mais adiante, ambientes (o gabinete de...) e objectos (o microscópio de...) particularizados. Na verdade, a instituição científica continuava a imprimir à matéria edificada a força de uma memória de factos e feitos, onde espraiava, também, uma das suas razões de ser.

E os Prémios Nobel? Com eles, a mentalidade dominante localizava, em torno de júri situado num país particularmente desenvolvido, o valor atribuído à necessidade de reconhecer o combate dedicado em prol de uma vacina, a vocação assumida para atingir uma lei ou a missão de transpor mais um avanço na conquista de uma teoria significativa. Simultaneamente, elevava este sector privilegiado da memória moderna, em prol das suas estrelas, ídolos e heróis, à escala mundial. Para finalizar, não se denegue, contudo, quanto esta configuração da memória científica moderna foi tantas vezes partidariamente associada a intuitos nacionalistas, segundo esta fórmula: ...aos Cientistas de eleição, a memória da Nação reconhecida...

Crise da memória na comunidade científica actual?

Primeiro, atenda-se a duas situações óbvias: hoje, vive-se uma aceleração da história e a crise da memória passa através de uma tradição por defeito. Depois, acrescente-se-lhes um lugar comum: a globalização e a internet invadiram os nossos tempos e espaços.

Como consequência, a sociedade actual está imbuída de bloqueios amnésicos fortes. Isso acontecendo por causa dos ritmos dominantes no quotidiano e dos meios de comunicação disponíveis: os instantes prevalecem e as proximidades virtuais são cada vez maiores.

Permanecendo-se no óbvio e lugar comum, passe-se a descrever a situação a nível de uma área científica significativa, a História das Ciências, e de índices institucionais significativos, os Museus de História Natural, os Museus das Ciências, os Museus das Técnicas e das Tecnologias.

O que está a acontecer com a História das Ciências na comunidade científica actual?

Recuando ao passado para melhor detectar o presente, percebe-se que, apesar de os iluministas enunciarem problemáticas e motivações relacionadas com a dinâmica temporal do conhecimento científico, a individualidade disciplinar da História das Ciências só começou a ser possível, a partir do século XIX.

Na verdade, os enunciados e gestos discursivos que materializaram esta ocorrência supuseram um sistema epistémico, onde a dimensão temporal representava uma categoria fundamental de inteligibilidade para compreender a natureza humana e suas produções, e onde a dimensão científica começava a incluir, além de adquiridos práticos indiscutivelmente bem sucedidos, desde o início da modernidade (ciências matemáticas e físicas), temáticas cognitivas novas, mas já promissoras (ciências sociais e humanas).

Inseriram-se igualmente, numa perspectiva ligada mais directamente ao contexto material, num sistema sócio-económico, onde as ciências beneficiavam das estruturas, avanços e conquistas decorrentes da segunda revolução industrial, e onde sobressaíam, não só como entidades necessárias às técnicas e engenharias, mas também como agentes destacados em prol de uma mentalidade global servindo uma mística de progresso. Esta mística de progresso extrapolava-se em adquiridos cognitivos e em factores materiais, concebidos como fins a incrementar à escala mundial, incluindo a certeza que a evolução presente e futura da ciência, enquanto pletora de conhecimentos fundamentais e aplicados, traria, seguramente, um mundo melhor para todos.

O reconhecimento, por parte da ideologia dominante, de como o melhor dos mundos possíveis implicava a intervenção actual(izada) das ciências, foi-se associando a um ideal tendento para valorizar a importância de as conhecer desde o passado. Como encarassem tais preocupações sob a égide de um imperativo, o positivismo e o neo-positivismo assumiram um papel destacado entre os demais.

Já neste século, as condições epistemológicas que presidiram à definição do estatuto disciplinar da História das Ciências revelaram um percurso com determinadas características: a ideia globalizante em termos de desenvolvimento (Comte) ou de evolução cedeu lugar ao conceito de crescimento (Popper, Kuhn); o modelo continuísta de história sem hiatos nem crises (Duhèm) foi substituído pela detecção de mutações (Koyré) rupturas (Bachelard, Althusser) ou revoluções (Kuhn); o conceito de progresso (Spencer) foi questionado e abandonado em favor de uma consciência muito menos ilusória e optimista (Foucault); o elo entre História das Ciências e Filosofia das Ciências, de origem marcadamente francesa, sofreu mudanças, quer no sentido de maior separação entre as duas (Popper), quer no sentido de interligações mais fundamentadas e consequentes (Canguilhem); a integração interdisciplinar, a nível de problemáticas e metodologias, foi aumentando.

A exigência de haver uma área disciplinar de História e Filosofia das Ciências retirou sentido dos requisitos seguintes: a identidade e a autonomia das duas disciplinas não invalida a pertinência da sua constituição num campo, passível de interceptar e de entrecruzar questões em comum; a viabilidade desta postura torna-se óbvia sempre que se insiste na recorrência a conteúdos históricos, por parte da Filosofia das Ciências, ou quando se prossegue na investigação tendendo para lógicas de inteligibilidade, no caso da História das Ciências.

As estruturas sociais e mentais que determinaram a dinâmica em favor do reconhecimento institucional desta área mostraram que a comunidade científica percebe, cada vez mais, quanto as matérias e os conteúdos de índole histórica equivalem a uma vertente (in)formativa de peso.

Paralelamente, aumentam os defensores da sua utilidade efectiva para professores, investigadores e técnicos. Apesar de permanecerem resistências provenientes de meios fechados, por resquícios positivistas ou pelo imperialismo tecnocrático, é indiscutível que ela faz parte dos curricula ministrados nas universidades e faculdades de prestígio. Importa atender ainda aos problemas que tem levantado a profissionalização dos agentes.

Se a formação de base é em humanidades será aconselhável uma formação complementar em ciência. Se a formação de base é científica será necessária uma formação posterior em teorias e metodologias históricas. Todavia, é preciso não esquecer como é difícil de atingir uma harmonia e um nível idêntico entre as duas formações; razão acrescida para se defender quanto estas matérias, conteúdos e métodos sempre beneficiarão de projectos realizados por equipas interdisciplinares.

Além disso, todo o profissional deverá ter consciência que trabalha com objectos originados no interior de conceitos e de modos de fazer no tempo, e destinados a serem retrabalhados por um rigor teórico e metodologias historiográficas actualizadas e adequadas. Na verdade, uma disciplina deste género actualiza, ao produzir um objecto novo, um jogo particular entre o homogéneo e o heterogéneo, porquanto implica intercepções entre discursividades várias, do científico ao filosófico e histórico: o primeiro objecto é construído a partir de fenómenos naturais ou humanos, no quadro de uma configuração teórica e de modelos precisos de abordagem. Porque não equivale a nada de dado, mas de feito, chama-se-lhe facto científico; o segundo objecto é criado a partir de factos científicos, que são sujeitos a uma reelaboração através de princípios teóricos e de métodos historiográficos, de molde a transformar os acontecimentos científicos ocorridos no tempo em factos científicos e históricos.

Este objecto só adquirirá existência se se fizer intervir um espaço fundamental, sem o qual nada de válido e de rigoroso será feito sobre o homem e suas produções quando perspectivados dentro da ordem das sucessões. Trata-se do arquivo.

Aqui, como aliás com qualquer outra investigação historiográfica, o contacto-convívio com as fontes primárias é imprescindível e só ele evitará que não se acumulem erros, por desconhecimento ou interpretação abusiva dos documentos. Com efeito, a heurística deve ser planificada de molde a reunir uma informação suficientemente representativa, o que corresponde, no caso das ciências modernas, a um corpus memorial heterogéneo e complexo; o qual irá das teorias aos métodos, dos cientistas às instituições, dos equipamentos às formas de associativismo. Tal base é imperiosa para que a memória veiculada pela documentação secundária seja relida e reavaliada. Por isso, não são de desprezar os perigos decorrentes de erros ocasionados por quem se outorga o direito de hermenêuticas, repetindo afirmações e escrevendo textos sem qualquer autoridade, por falta de formação ou por afastamento do arquivo.

Dispondo de várias metodologias de descrição e de interpretação, cabe ao historiador das ciências escolher os modelos mais adaptados aos objectos em causa, sabendo que todos os modelos apresentam lacunas e limitações, e que cada uma das aplicações cria objectos diferentes. Daí o interesse de tornar conscientes e explícitos os princípios e a priori de que parte, podendo a Teoria da História e a Filosofia das Ciências ser particularmente fecundas. Quando se perspectiva a produção científica e o modo como a comunidade científica funciona, na actualidade, é-se levado a defender que as ciências estão intimamente ligadas a factores e interesses sócio-económicos.

A realidade de hoje, porventura mais óbvia e excessiva, não estará, contudo, demasiado afastada de outras realidades que foram acontecendo, desde que as ciências modernas emergiram a partir do século XVI, porquanto: o processo das ciências está sempre a ser influenciado ou a influenciar a sociedade onde se integra; o devir da sociedade tem ou recebe impacto da formulação do pensamento científico contemporâneo. Paralelamente, induz-se uma confluência: a História das Ciências, a Filosofia das Ciências e a Sociologia da Ciências lucram em compreensão e em extensão, quando se deixam interceptar e influenciar mutuamente.

Embora internalistas e externalistas não atribuam a mesma importância ao papel desempenhado pelas estruturas mentais e sociais na formulação das estruturas científicas, pois partem de lógicas e de níveis de análise diferentes, ninguém pode negar, de um modo radical e pertinente, que a configuração epistemológica das ciências, numa determinada época, seja independente das teorias e sistemas económicos vigentes.

Logo, a realidade histórica e a exigência disciplinar apontam para benefícios decorrentes de uma articulação. Se esta articulação não se efectiva, tanto quanto seria de desejar, é porque encontra, entre outros bloqueios, entraves provenientes das estruturas institucionais. Qualquer afastamento parece prejudicial, porquanto esta forma de organização corresponde a inerências teóricas fundamentais. Todavia, este caso, como outros do género, evidencia quão importantes poderão ser instâncias institucionais interdisciplinares que facultem o diálogo entre disciplinas afins, na investigação e ensino.

O que está a acontecer com a memória nos Museus de História Natural, Museus de Ciência, Museus das Técnicas e das Tecnologias ?

Estas instituições científicas evidenciam que o saber-poder está interessado nestes espaços, favorecendo-os em número e qualidade. Por isso, lhes outorga verbas a não desprezar, do Science Center a La Villette. Por isso, se serve deles, como contrapartida. A relação diz-se com intuitos sociais, nomeadamente pedagógicos. Mas acaba por ter também alvos publicitários. Pode interiorizar ainda algo de propaganda. Algo de apologético, até. Todavia, apesar destes sinais, a comunidade científica tem uma posição ambígua perante o seu património espiritual e material. Aspectos que se tornam evidentes no modo como se posiciona face aos arquivos, bibliotecas e museus das ciências. Se, por um lado, os acolhe e multiplica, revelando um carinho especial pelo seu património histórico. Por outro lado, evidencia certa condescendência pejorativa, remetendo-os para o que chama de divulgação científica, com os seus perigos de pedagogismo ou como mensagem tão didáctica que reduz o saber ao ver. Associadas à ideia de vulgarização, estas expressões podem ser usadas muitas vezes com um tom de superioridade e desprezo, que não favorece o diálogo entre os cientistas e o grande público.

Surgindo como mais adequada, a expressão "comunicação científica" é, sem dúvida, melhor, porque não traduz uma situação de desnível entre os interlocutores, porque não revela uma distância ostensivamente desejada ou mantida. Contudo, devido aos preconceitos vigentes, só pode ser usada por um ciclo restrito, nitidamente de esquerda: quem o faz, fá-lo predominantemente por motivos alternativos. Um circuito comunicativo equilibrado proíbe pólos demasiado afastados, pelo que importa estabelecer regras propiciadoras de uma linguagem rigorosa, mas com algum grau de acessibilidade. Ou seja, o recurso a um vocabulário adaptado à situação, logo, nos antípodas do especialista petulante que usa e abusa da gíria profissional. Evidentemente que dizer o difícil através de uma forma fácil vai de par com atitudes de base democrática, porque requer um esforço aturado, mantido com simplicidade, para ser autêntico. No universo teórico e experimental das ciências actuais, conhecer é um processo à margem da identidade de um qualquer sujeito e de uma qualquer memória, frequentemente.

(1) Como este trabalho equivale a um exercício pessoal de memória acompanhado pela reflexão, síntese crítica a partir de conteúdos resultantes de uma formação filosófica, não se recorreu a nenhuma bibliografia, ao longo do texto. Todavia, dada a sua qualidade teórica, destaca-se este título: Pierre Nora - Les lieux de mémoire de la République. Paris, Gallimard, 1984. Apesar de tratar da presença da memória num tempo concreto contém enunciados importantes para a comprensão genérica da forma como actua a memória colectiva. Na verdade, o lugar da memória na comunidade científica apresenta semelhanças e diferenças com outras memórias e outras comunidades.
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Trabalho integrado no projecto Literacia científico-tecnológica e opinião pública: o caso dos consumidores dos Museus das Ciências, subsidiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Corresponde à segunda parte da comunicação O Lugar da Memória na História do Conhecimento e na Comunidade Científica e Museológica Actual apresentada em Mylenio y Memoria - Congresso Internacional Europa-América, Museos y Archivos para a Historia de la Ciencia, Buenos Aires, 20-24.11.2000.
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Ana Luísa Janeira é Professora Associada do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)

Emails: janeira@fc.ul.pt e analuisajaneira@clix.pt