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ANA LUÍSA JANEIRA

Num momento em que o Ensino Superior em Portugal discute e assume a integração do Processo de Bolonha, talvez possa ser interessante rever aspectos – fragilidades e virtudes – decorrentes, de quem fez a sua formação num outro paradigma. Que ele nos ajude a pensar estas e outras coisas.
 

ENTREVISTA A ANA LUISA JANEIRA
REALIZADA POR
JOSÉ CARLOS LEITE
E MAURÍLIA VADEREZ L. DO AMARAL
(CUIABÁ ,14/08/03)

Professora do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em Filosofia das Ciências e História das Ciências. Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

O foco da investigação-ensino tem-se voltado para temáticas comuns às de pesquisadores da UFMT, nomeadamente do Departamento de Filosofia e Programa de Pós em História, com destaque para a problemática foucaltiana (especialmente as que versam sobre a questão do sujeito/objecto; espaço/tempo, texto/contexto).

Outros temas comuns estão relacionados com o que por aqui se denomina etno-conhecimento ou etno-ciência. Qual seja, conhecimentos ou saberes quotidianos que sobrevivem e resistem, num mundo dominado pela ciência ou pela tecno-ciência. Qual seja, ainda, conhecimentos herdados da chamada tradição, transmitidos geralmente por via oral, e que sobrevivem ao arrepio das ciências e das técnicas modernas. Assim, a busca pelo porquê da sobrevivência destes saberes e fazeres tem sido dominante nos seus trabalhos mais recentes.

Portanto, a vinda e o encontro com a Professora Ana Luísa redundou numa rica experiência e troca de conhecimento (que promete se repetir no futuro) com pesquisadores (docentes e discentes) que actuam na linha de pesquisa Filosofia da Ciência e Epistemologia, do Departamento de Filosofia e do Mestrado em História.

Vindo regularmente ao Brasil, nos últimos vinte anos, em 2003, o itinerário incluiu uma visita a Cuiabá. O motivo dessa inclusão dá-se pelo facto – apontado por ela – de que muitas das expedições científicas (algumas denominadas “viagens filosóficas”) que ocorrerem nos três últimos séculos - se iniciavam, ou terminavam em Mato Grosso, nomeadamente em Cuiabá.

Veio a convite do Departamento de Filosofia, para conduzir os trabalhos do VIII Colóquio de Filosofia. Este colóquio esteve sob a coordenação da Professora Josita Priante. Tendo ocorrido entre os dias 05 a 07/08, de 2003, contou com o apoio de outros membros da linha de pesquisa Filosofia da Ciência e Epistemologia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso e com o apoio institucional do Programa de Pós-Graduação em História.

Neste contexto, ministrou palestras relacionadas com a problemática da “Inovação-Tradição-Globalização”, com enfoque na Epistemologia dos conceitos de Espaço e Tempo. Tratou também de temas voltados para uma área disciplinar concreta: a História das Ciências e a Filosofia das Ciências; ou também, na óptica da realidade quotidiana actual, tendo a Cybersociedade e Cybercultura como campo de discussão privilegiada. Finalmente, no dia 13/08, abordou o tema “Globalização e o lugar da diferença no mundo contemporâneo”, num evento denominado Papo Cerrado, no espaço do SESC Arsenal – um dos parceiros da UFMT, na viabilização da sua vinda a Cuiabá.

Pelas temáticas abordadas pode inferir-se a rica contribuição para a construção de uma nova episteme, especialmente no tocante às interfaces entre a Filosofia e Ciências. Além da entrevista referida, os interessados podem consultar artigos e relatos de projectos, de que é coordenadora, nas Revistas Atalaia – Intermundos e Episteme. (1)

Após a realização das actividades referidas, concedeu uma entrevista aos docentes e pesquisadores José Carlos Leite e Maurília Vaderez L. do Amaral. A entrevista teve por base um roteiro elaborado previamente (composto por cerca de uma dezena de itens).

 

Fale um pouco sobre a sua trajectória intelectual e profissional: a graduação, mestrado, doutoramento, agregação...

Bom, relativamente a todo esse percurso e numa retrospectiva geral, encontro-me num trajecto com alguns pedregulhos, mas sempre com uma bela paisagem à volta.

Primeiro, frequentei a Universidade de Coimbra. No fim do primeiro ano, apanhei o que se chamava, na altura, um esgotamento; diria mais uma crise de maturação, provocada pelo facto de ter saído pela primeira vez da minha cidade natal, o Porto. Ir para Coimbra e nesse ano ter deflagrado o início da crise académica, perturbou-me. Entretanto, foi recriada a Faculdade Letras do Porto, que Salazar tinha mandado fechar, por razões ideológicas. Quando foi restaurada, houve um aspecto que constituiu um pano de fundo importante para o clima cultural que ali se viveu, no início: os alunos quando chegavam à Faculdade tinham frequentado quase todos, outros cursos. Sendo um pequeno grupo (uns 20 em História e uns 20 em Filosofia), havia um contacto próximo com os professores. Quer dizer, tínhamos facilidades de convívio entre nós [exemplos dos mais destacados – já desde então com posições muito diferentes (o que tornava as nossas discussões, dentro e fora das aulas, interessantíssimas) e depois bem conhecidos, em quadrantes variados, naturalmente – José Mário Branco, o cantor, Zeferino Coelho, director da Caminho, Luís Adão da Fonseca, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Francisco Melo, director do Avante, José Carlos Costa Marques, candidato a Presidente da República pelos verdes há uns quinze anos, D. Januário Reis Torgal, bispo castrense] e com os professores, os quais tinham uma preocupação grande de passar cultura, mesmo fora das aulas Cultura e ainda, as regras, as normas, os princípios, os símbolos da instituição... ; aspecto que, ao longo da minha vida sempre privilegiei e que é uma coisa que se perdeu quase completamente. Os mestres tinham essa preocupação: não só de ensinar, mas de nos preparar para a vida futura, nomeadamente para quem tinha maior propensão académica. Trata-se de um aspecto importante, que faz falta, e que vejo desaparecido da Universidade portuguesa. Pois era, davam-nos a aprender como nos inserir na instituição, nos ritos universitários, como nos comportar em situações de debates ideológicos, em situações de colóquios... Além disso, uns tantos eram preparados, ao longo da formação, para situações precisas da investigação e docência.

Como tenho dito por várias vezes, teria sido uma "medievalista", pelas minhas afinidades com as matérias da Cultura Medieval, da Filosofia Medieval. Porém, quando me deparei com a Filosofia Moderna e Contemporânea, acabei por ficar nela. Isso correspondeu a uma adesão que me levou a propor uma situação pouco familiar: uma mulher com tema da tese de licenciatura. Na altura, chamava-se de tese de licenciatura, hoje seria dissertação de mestrado. Propus Simone Weil, uma pensadora francesa importante, mas muito pouca conhecida entre nós. E deparei-me com algumas perplexidades: pelo que, no próprio dia da defesa, logo a primeira pergunta, feita pelo Professor Eduardo Soveral, me questionava se não conhecia nenhum homem que me agradasse na História da Filosofia, Não fiz essa escolha por uma atitude feminista, e até por isso mesmo, nunca me passou pela cabeça que uma mulher não pudesse ser tema de uma dissertação.

Afortunadamente e para grande felicidade minha, contara, desde sempre, com a grande abertura do Professor Júlio Fragata, que aceitara ser meu orientador. Com efeito, passou-me a mensagem de que poderia, e deveria continuar a não abandonar, os temas que quisesse, porque todos os temas eram passíveis de ser temas de Filosofia. Como contrapartida, deveria ser ainda mais exímia na abordagem teórica e na metodologia. Evidentemente que a escolha de uma pensadora me obrigou a articular muito bem o rigor filosófico com o objecto em questão. Porque, embora se possa dizer que Simone Weil é uma filósofa, terei tendência a achar que é, predominantemente, uma pensadora. Seja filósofa, seja pensadora, tinha um pensamento tão original, tão fora dos esquemas académicos e da França da época, que fui obrigada a desenvolver as minhas capacidades metodológicas, por forma a que o tratamento que lhe dava fosse indiscutivelmente filosófico.

Apesar disso, fui convidada para assistente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Não aceitei porque percebia perfeitamente que sendo a primeira aluna que acabava o curso, isso implicaria, naquele momento, estar sujeita a algumas “domesticações”, que não me via capaz de aceitar. Para superar o facto, tinha pedido uma bolsa ao Governo Francês, para fazer doutoramento em Paris sobre Teilhard de Chardin, uma vez que em Portugal era proibido. Logo, ou teria a bolsa para a França ou teria que mudar o tema, e eu não queria mudar. Nessa base, a minha argumentação junto ao Adido Cultural da França foi forte. Homem muito inteligente e conceituado defensor da cultura lusa-francesa, M. Robert Bréchon percebeu o meu desejo. Além disso, minha postura era a de alguém muito firme no que queria, apesar de só ter 23 anos.

Vou para França. Aliás, entretanto ouvira muitos comentários na Universidade do Porto: “como é que, com uma bolsa pequena, não tinha preferido aceitar ficar pela situação de assistente”!!! Mas não me deixei seduzir por isso, nem pouco mais ou menos. Porque sentia com muita nitidez: ou desenvolvia as minhas características pessoais, e vinha já doutorada, ou seria francamente sujeita a um processo que não iria aguentar. Além de acreditar no que queria, uma certa rebeldia... Fui trabalhar sobre Teilhard de Chardin, com um espírito muito exigente, que veio a ser, depois, o único filósofo francês na Académie Française, o Professor Henri Goulhier. Pormenor interessante: além de especialista em Pascal, era também de Filosofia do Teatro, um gentleman presente em todos os espectáculos parisienses de bom teatro.

Outro aspecto que se transformou num prerrogativa: trabalhar com um filósofo não-teilhardiano. Num mundo dividido entre os prós e os contras do autor do Phénomène humain, tratava-se de uma pessoa sólida, culta e aberta, o único que aceitava orientar um doutoramento sobre o “jesuíta evolucionista”, em toda a França. E com esse comportamento, diga-se a verdade, acabava por ajudar a desenvolver a reflexão e a crítica, bem mais dos que reagiam só por conservadorismo e medo.

Para além da pertinência dos seus comentários e conselhos, lembro de me dizer, uma vez, assim: “Teilhard tem de ter lido Duhèm; toda gente o lia na época”. E não é que, mal começo a intensificar o meu estudo, verifico que o seu primeiro trabalho publicado, ainda estudante no secundário, tinha sido sobre o físico mencionado pelo meu orientador…. Nunca me esqueci de como uma pessoa com uma visão ampla me orientou, seguindo um tipo de raciocínio como este: “um homem que viveu num determinado país, em determinada época, com determinadas preocupações, certamente que leu determinados autores”. (Quantas vezes afugentamos, injustamente, situações como esta, por estarmos manietados pelos especialistas?)

Encontrávamo-nos de quinze em quinze dias, durante uma tarde, ao longo de mais de ano e meio. Seguiu tudo a pari passo, mas nunca leu nenhum texto meu. Na época e em França, não era comum mostrar textos escritos aos orientadores. Conversávamos com eles, profundamente, mas os orientadores só viam as teses no momento em que a secretaria da universidade lhes enviava o volume concluído. Assim, não interferiam directamente na produção escrita. Falavam connosco, tinham a capacidade de, numa dada altura, afirmar: “chegou o momento de escrever”, “chegou o momento de entregar”, mas não havia nada que significasse correcção do texto. Sob este aspecto, era nosso, só nosso. Uma imensa responsabilidade. Aspecto que, entretanto, se alterou completamente.

Quando tudo corria bem e os orientadores assumiam a função, era muito interessante, porque, apesar do muito trabalho e da tensão da prova, estabelecíamos um diálogo permanente e recebíamos orientações, para a tese e para a vida. Via de regra, como mestres muitos deles, passavam mensagens, na forma como reflectiam e actuavam. Quando regressei a Lisboa, sentia-me feliz e perfeitamente preparada para arcar com a vida académica. Quando voltei, tinha a sensação de estar. o que se diz, formada.

Na ocasião, resolvi optar por um caminho, possível na época, e dedicar-me a escolher bem onde é que queria trabalhar. Por indicação da Professora Manuela Silva e a meu pedido, falei com várias pessoas. Num país sem liberdade de pensamento, não queria nada ensinar Filosofia. Estava, pois, com a sensação de que queria fazer outra coisa. Fui para o Gabinete de Investigações Sociais, dirigido pelo Professor Adérito Sedas Nunes, o iniciador das Ciências Sociais, entre nós. Éramos uns doze investigadores, trabalhávamos todos num mesmo espaço concreto, mas éramos pagos por instâncias diferentes, eu, por exemplo, recebia pelo Conselho dos Ministros. Uma realidade curiosa, um sistema com potencialidades: eu era a única filósofa, havia dois economistas, um engenheiro químico, uma engenheira agrónoma, uma de germânicas e outra de românicas, etc.. Tínhamos por regra respeitarmo-nos uns aos outros e, nessa base, comecei a perceber, principalmente durante as reuniões, como a Filosofia se articulava com tudo, o que às vezes não acontecia com as demais formações. Maravilhava-me ver como poderia ser importante, no diálogo entre as diversas disciplinas! E também por aí, me veio, por certo, o interesse remanescente pela interdisciplinaridade.

Ao fim de dois anos, comecei a compreender que precisava mesmo de fazer uma preparação orientada para História e Filosofia das Ciências. A maneira mais próxima que encontrei foi concorrer para um leitorado. Isto é de referir para chamar atenção que, na altura, os leitorados eram uma das formas de podermos ir mais longe, fora de Portugal: íamos para ensinar Português, mas, se assim o quiséssemos, era-nos possibilitado fazer uma especialização. Por conseguinte, um bom esquema para quem queria mergulhar no mundo do trabalho, e não eternizar a situação de bolseira. Acho que fui escolhida por ser mulher: ocorre que havia uns litígios no leitorado na Université de Montpellier III, para onde fui, e no Instituto de Alta Cultura acharam que seria a mais indicada para resolver os litígios que havia entre a hierarquia francesa. Podia escolher frequentar várias disciplinas, gratuitamente. Fui falar com professores de Filosofia e deixaram-me assistir às aulas. Claro que na condição de leitora não deveria haver grande diferença entre nós, uma vez que éramos colegas, contudo, assumi uma atitude de aluna a cem por cento: nunca faltava e fazia todos trabalhos. Foi então que me iniciei na Escola de Bachelard, porque as aulas que mais frequentava eram de discípulos de Georges Canguilhem e naturalmente influenciados por Gaston Bachelard.

Depois, pareceu-me que também seria interessante fazer uma especialização, pelo lado inglês. Em 1973, fui criar o leitorado de português na University of Sheffield. Durante esse ano escolar, deu-se a Revolução dos Cravos. Tinha sido meu ponto de honra, recusar ensinar Filosofia em Portugal durante o período salazarista, mas com a revolução de Abril senti que se me propiciassem um espaço para ensinar, até poderia ser interessante. No imediato, fui trabalhar para o Instituto de Alta Cultura, onde comecei a familiarizar-me com a vertente da investigação científica em Portugal, complemento sociológico para os meus interesses epistemológicos. Por isso mesmo, com a extinção do IAC, pedi para ir para o Instituto Nacional de Investigação Científica. A certa altura, surgiu uma luz: um decreto permitiu-me continuar técnica do Ministério da Educação, no Instituto de Alta Cultura, e, simultaneamente, ensinar no ensino superior. Espero que a síntese que estou a fazer não dê a parecer que foi muito fácil, porque não foi. Evidentemente que era complicado para a mentalidade vigente que uma funcionária pública fosse dar aulas para uma universidade. Felizmente houve um presidente do INIC (Professor Domingos de Moura) e um Secretário de Estado do Ensino Superior (Professor António Brotas) que perceberam o meu caso. Logo, depois de bastantes complicações burocráticas, quanto à forma de se processar o meu vencimento, e algumas invejas, fui dar aulas para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Entrei por força de uma meia dúzia de alunos (realço a Ana Maria Simões, que veio a ser investigadora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e a Filomena Freitas, actualmente professora do Departamento de Química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, logo minha colega, actualmente) dinamizados pela Clara Magalhães, hoje Professora na Universidade de Aveiro. Desde logo, houve uma grande conivência entre mim e os alunos; porque só entrei de facto, pela vontade deles; os colegas concordaram, mas a preocupação com a interdisciplinaridade só existia nos estudantes. Comecei a leccionar Filosofia das Ciências, depois Sociologia das Ciências, a seguir ministrei História das Ciências e Ética das Ciências e das Técnicas; num determinado período leccionei ainda História do Pensamento Biológico.

Ao longo deste tempo, já lá vão 25 anos que estou na FCUL, ganhei uma forma própria de estar no conhecimento e na universidade: por um lado, quando falam da “minha escola” não sei qual é, porque andei no Porto, por Coimbra e Paris, e estou numa faculdade que nem sequer é da minha área, mas consegui uma postura interdisciplinar, no que esta exige de esforço e utopia; por outro lado, sinto que estou mais desperta para problemas que vejo quando entro num Laboratório de Química ou quando vou a uma conferência de um colega meu de Matemática, do que para os problemas habituais dos meus colegas de Filosofia, inseridos nas Faculdades de Letras ou nas Faculdades de Ciências Sociais e Humanas. Resumindo, o que fui aprendendo, ao longo destes anos? A ciência não é o que o positivismo levou a crer e fez crer, nos nossos países. É um rigor. Não é o rigor. Na verdade, tenho conseguido fazer passar que a Filosofia também é um rigor, que a História também é um rigor, e que todos temos que nos respeitar. Isto muito apoiado no trabalho de investigação, claro.

Por conseguinte, a minha forma de estar decorre de um trabalho sério, do ponto de vista teórico. Não me sinto marginalizada, mas estou nas margens. Coloquei-me numa posição servida por um posicionamento reflexivo e um pensamento crítico.

O que significou, em sua trajectória intelectual, vale dizer também em sua vida, a vivência de Maio de 68, em Paris.

“Sou de Maio de 68 e quero continuar a sê-lo”. Sendo assim, o que significou esse Maio? Significou um período crítico, complicadíssimo. Havia saído de um Portugal salazarista-marcelista, com todas as implicações inerentes. Com um Primeiro-Ministro que dava certa abertura... mas não passava de pequenas reformas, sem mudar o sistema. Logo, Maio de 68 foi impressionante, pelo que pude viver de contradições, de dificuldades, de conflitos, de novidades, toda uma movimentação social nunca vista... Era uma movimentação que contrariava tudo aquilo que tinha vivido antes, por educação, por princípios... Por isso, uma forma complicada de interiorizar, emocionalmente. Não posso considerar-me que tenha sido uma pessoa que aderiu logo. Mas vivi-o, desde logo, no corpo e na alma. Com os dias, comecei a sentir que estava vivenciando mudanças, por dentro de mim. E que teria que me assumir como tal, porque tinham ocorrido acontecimentos marcantes, acontecimentos que iria ser determinante em muitas outras atitudes futuras. Com efeito, até hoje, há coisas que penso e faço com ecos de 68.

Em conversa anterior você dizia que em sua formação – nomeadamente no mestrado e doutoramento – dois conceitos chaves estiveram presentes: o de vazio (explorado na investigação do pensamento de Simone Weil) e o de energia (este presente na investigação do pensamento de Pierre Teilhard de Chardin). Poderia falar sobre eles. O conceito de energia parece que persiste ao longo da história da Filosofia/Ciência não apenas ocidental - Aristóteles tratou dele, na China Antiga temos o ki ou chi, no século XIX marcou a termodinâmica, com Einstein o mesmo passa a ser fundamental para se compreender a natureza; ele é retomado em Teilhard de Chardin, sob nova perspectiva, se não estou equivocado. Mas, em que pese o mesmo ser tão falado hoje em dia, ele ainda comporta uma aura metafísica. A pergunta é: será que algum dia ele poderá vir a ser compreendido?

Bem de facto, essa importância (vou concentrar-me unicamente a nível pessoal), atribuo-a, porque só com o tempo me apercebi quanto o conceito de vazio - no caso de Simone era chave - como o conceito de energia - também fundamental em Teilhard – têm a ver comigo. Penso houve alguém que me ajudou a pensar nisso, mas não sei bem quem que tenho vivido essa questão do vazio e da energia, de uma forma integrada. Intelectualmente, sou uma pessoa com muita vivacidade, mas a minha estrutura física tem, muitas vezes, dificuldade de acompanhar a minha resistência psíquica. Tenho uma energia intelectual grande - que foi treinada, evidentemente - não se nasce assim, mas há tipos de educação que a favorecem. De momento, estamos a sofrer do contrário: a ausência de uma educação que a treine. Fui muito treinada pelas instituições escolares, onde andei, a trabalhar com energia e com disciplina: não é preciso trabalhar demasiado, mas trabalhar com disciplina e fazer as coisas por prazer, diziam-me. Talvez achem um pouco estranho, mas raramente trabalho numa coisa sem prazer. Fazia parte da educação, mesmo a nível do primário, que precisávamos de fazer as coisas com gosto. Lamento que se tenham perdido esses quadros formativos. Foi desde criança que me habituei a ser organizada. Desde o ensino primário, por exemplo, nunca era interrompida quando estudava; em casa, quando começávamos a preparar as lições, nunca éramos interrompidos - nem eu nem os meus irmãos –. Um clima de respeito absoluto pelo gesto de estudar Acho que as pessoas se preocupam pouco com o espaço onde a criança estuda, onde terá o seu canto de trabalho. E isso parece básico para todo um conjunto de situações que mais tarde já não se podem corrigir, por se tratar de hábitos que talvez não se possam adquirir mais. Por opção - acho que não é por acaso que trabalhei dois místicos - percebo que serei tanto melhor no contacto com os outros, quanto tiver um certo isolamento, os meus momentos de reflexão, a minha escrita. Em harmonia, com o tempo para as outras pessoas, nas relações de amizade, nos convívios, nas aulas, nas viagens... Logo, no meu quotidiano, não prescindo da minha escrita disciplinada. Sempre que posso, trabalho nela, de quatro a cinco horas por dia, no mínimo. Evidentemente que há uma escrita que tem a ver com projectos em equipe, nomeadamente interdisciplinares. Além dela, gosto de ter sempre um projecto meu, no qual trabalho sozinha. Esta harmonia tem sido relativamente fácil de conseguir. A equipe levanta outro tipo de dificuldades, porque lido com outros ritmos. Sou uma pessoa que diz “posso”, “não posso”. Geralmente noto que as pessoas dizem que estão dispostas, que podem fazer, mas acabam por não fazer ou fazer demasiado tarde, sem respeito pelos prazos. Isso cria - no meu estilo concreto - uma dificuldade muito grande. Não sei se alguma vez me adaptarei a essas diferenças de ritmo que, também são, muitas vezes, falta de ritmos da própria qualidade, na produção.

Todavia e curiosamente, acho que a maior opção que fiz não foi propriamente em prol da vida intelectual. Foi esse meu espírito andarilho pelo mundo. Isso é que foi determinante para o resto. Não foi por razões intelectuais que fiz certas opções e escolhi certas exigências. Acho que não sou consumista por uma opção bem vivenciada, aquando da viagem: com uma mala na mão, não se pode ser dado à posse.

 Maurília Valderez - Gostaria de retomar um fala sua - tocada logo no início da entrevista – onde você faz uma distinção entre o filósofo e o pensador. Penso ser extremamente pertinente - principalmente para aqueles que se dedicam à Filosofia. É uma distinção que outros pensadores fazem na própria tradição filosófica. Como Heidegger, por exemplo, e Nietzsche também. O próprio Foucault menciona a distinção do campo da Filosofia e do pensamento. Deleuze também fala da questão do pensamento como sendo mais importante do que a questão da Filosofia, remetendo à História da Filosofia.

Às vezes pressente-se mais uma distinção do que se sabe explicá-la. Terei tendência para considerar que o filosofo é, genericamente, aquele que conhece por dentro a tradição, no âmbito da qual o filosofa. E essa tradição tem determinadas linhas, determinadas normas, determinadas contradições e ambiguidades, é um corpo, um corpus de conhecimento que se forma, alicerçado ao longo dos tempos e com figuras maiores - que são os filósofos. Isso não quer dizer que uma pessoa - com formação em Filosofia - não possa tornar-se um pensador. E assim questioná-la, a ponto de achar de não entrar nos limites que a tradição lhe impõe, e de quer extravasar. Neste caso, diria, torna-se pensador. Por exemplo, no caso da Simone (no caso do Teilhard de Chardin não tem grande formação em Filosofia propriamente dita) ela é uma agregée em Filosofia. Fez todos os percursos – num país que não é um qualquer, mas a França – apresentando uma formação de base muito forte. Todavia parece ter preferido ser pensadora, talvez porque a grelha onde se desenvolvia a Filosofia não se coadunava com a sua personalidade e com o que esperava da vida? Até é capaz de ser mais difícil ser pensador, quando se tem formação em Filosofia, do que quando se começam a articular certos conhecimentos, certas reflexões, sem as limitações filosóficas tradicionais. Não querendo ser mal interpretada, avanço que, no limite, talvez possa dever ser precisa uma melhor formação em Filosofia, quando se trabalham pensadores, do quando se trabalham filósofos consagrados.

Você defende como sendo muito salutar a pluralidade, a diversidade de ideias, de saberes, de fazeres. Sua actuação profissional revela este fato. Uma filósofa trabalhando num Departamento de Química. Vê alguma proximidade entre seu pensamento e o de Michel Serres (também filósofo da ciência), no tocante àquilo que este defende na obra O Terceiro Instruído (ver SERRES, Michel, (1993). O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget) traduzido em nosso meio por Filosofia Mestiça? Acho muito rica a analogia que ele faz da cultura ao lançar mão da imagem/metáfora do arlequim (palhaço com uma roupa multi-colorida). Sua roupa seria a imagem da multiplicidade - salutar para o mundo actual, conforme Serres preconiza? Qual a proximidade intelectual entre vocês – se é que existe?

Não conheço essa obra de Michel Serres. Mas com base noutros escritos, direi que tem uma postura semelhante. Mas nunca fiz grandes aproximações com o pensamento dele. Tenho a obra, sem nunca ter um convívio, mas sempre que o leio, encontro-o interessante. Além disso, representou um momento forte da Filosofia da Ciência na França, onde desbravou um campo aberto, articulado com outros conhecimentos, e indo além de outros pensadores da escola de Bachelard, por exemplo.

Quando foi que lhe ocorreu que as expedições científicas dos três últimos séculos ao Brasil – também chamadas de “viagens filosóficas” no século XVIII – poderiam ser objecto de interesse de investigação filosófica? Você poderia apontar a causa (ou razão) deste seu interesse? O que a atrai tanto ao Brasil; que a fez regressar aqui nos últimos 30 anos? E por que agora também Cuiabá, o Pantanal, neste seu itinerário/roteiro de 2003?

Noto que é mais do que evidente como as expedições tiveram um papel fundamental, dentro da História das Ciências da Natureza em Portugal. Agora, como é que chego lá? Cheguei lá porque a certa altura – nomeadamente com a aproximação à realidade cientifica brasileira – verifiquei quanto essa presença – presença significativa da Ciência portuguesa no Brasil (e também, claro, em África e no Oriente) – passou pelas expedições. Paralelamente, como sou nómada, com uma forte componente de viajante nos neurónios e veias, sei que isso me motivou, obviamente. Mas foi por um pedido da Professora Heloisa Domingues, do Museu de Astronomia do Rio de Janeiro, que me comecei a concentrar nesta questão? E por quê? Porque é que a questão me fascinou? Porque começava com uma “viagem filosófica”. Quer dizer, creio que nenhum filosofo poderá ser indiferente ao facto de terem existido viagens – a que a partir de um determinado período e com certas circunstâncias, nós apelidamos de expedições cientificas – que passaram pela designação de “viagem filosófica”. Que encanto!!!

E depois, quando percebi como trabalha o Laboratório da Biosfera da Amazônia, perguntei-me: como é que se processa a investigação? em que termos é feita? De que natureza são as colaborações que têm em São Paulo, Estados Unidos da América e na Alemanha? Mais ainda: porque teremos um conceito que em três séculos realmente se alterou tanto? Porque é que, hoje, não continuamos a usar a expressão viagem filosófica? Ou seja, da viagem filosófica ao programa espacial, o que fez alterar o contexto? Ou ainda, quais são os componentes da viagem filosófica que não existem mais no programa espacial? E o que é que o programa espacial tem, como composição e como atitude, que não havia na época? Nessa perspectiva, passei pelas expedições. Passei também por certas questões levantadas pela presença forte da Amazónia, como objecto científico, na actualidade. E acho que daí resultaram alguns encantamentos... Como, em última análise, a minha curiosidade pela vossa cidade. Assim, na medida em que verifiquei que, ao longo dos séculos, a maior parte das expedições começou e acabou aqui, realizei que tinha que vir até cá. Cuiabá surgiu, assim, como um nome fascinante, qualquer coisa de aventura, que tinha início e terminava neste lugar. Daí ter vindo conhecer-vos.

Você falava em outra ocasião que a ciência dos nossos dias já não é compreensível para o não-especialista. Já não conseguimos apreender a ciência pós-newtoniana. Isto não implicaria que mesmo para as pessoas escolarizadas (digo aquelas que têm oportunidade de chegar ao 3º grau) a ciência poderia ser uma outra espécie de mito? Explico: mesmo vivendo cercado pela ciência e seus produtos (estes que são filhos da técno-ciência e que cada dia mais invadem nossas vidas – vide as análises de Bruno Latour, em Jamais Fomos Modernos) não a compreenderemos hoje. Tal como foram os nossos antepassados que emergiram da natureza, viviam cercados por ela e, estavam (e estamos) acoplados a ela (a crermos em Maturana e Varela) e, no entanto, não a compreendiam. Daí o apelo ao mito.

Isto é o que nos queremos evitar que seja, não é? Porque se a Ciência se conservar como mito, nós temos uma cidadania amputada. Quer dizer, enquanto não tivermos hipótese de saber o que está acontecendo na Ciência, somos ignorantes e, na medida que a Ciência é forte na polis, na política actual, não seremos cidadãos do mundo.

A minha maior preocupação com a cultura cientifica - no sentido que todos devem ter acesso a ela – é reconhecer que é uma obrigação da Universidade facultá-la e que, se isso não acontecer, não poderemos ter opiniões, porque não percebemos, não sabemos lidar, não estamos por dentro, minimamente, e consequentemente permanecemos à margem de decisões que nos respeitam. Reconheço que a comunidade científica tem algumas figuras mundiais importantes no desenvolvimento da cultura cientifica, mas há muitos dos seus membros que estão interessados em manter o mito, a mistificação, o mistério. E apresentar a ciência como espectáculo, por exemplo, na forma como os museus interativos muitas vezes a representam: um cultivar do mito e cultivá-lo da pior maneira, sem sequer ir âmago do que a Ciência é.

Tem insistido da importância do espaço em suas investigações recentes. Daí seu foco nas expedições, paisagens, cartografias... Poderia falar sobre o que a levou para o universo da espacialidade (exterioridade) em detrimento da temporalidade (interioridade). Isto seria uma espécie de reacção a uma filosofia de marca cartesiano-kantiana, se é que se pode assim se expressar?

Sim, reacção houve. Agora foi muito favorecida por dois factores: por um lado, por ser de uma família onde o espaço construído é importante: meu avô era construtor civil, meu pai arquitecto, irmão arquitecto, sobrinho arquitecto. Isto é, lidei desde muito cedo, com situações espaciais. Chamavam muitas vezes a minha atenção para a organização de uma cidade, a organização de um edifício, a importância do espaço, a especificidade da decoração de um espaço. Ou seja, na minha educação o espaço foi fundamental. Mas embora fosse um movimento reivindicativo, com elementos de pluralidade no século XX, só tarde me apercebi, de modo explícito do seguinte: no meu quotidiano, manter o espaço da casa entrava na minha estética, mas não entrava na “minha filosofia”, onde dominava dominantemente o tempo. Contactar com Michel de Foucault, com o seu pensamento, levou-me a tomar consciência da importância estruturante do espaço. Forte componente. A partir daí, comecei a tratar de edifícios, cidades... e agora até já estou nos territórios, como na questão da Amazónia: principiei com a Filosofia ligada ao edifício da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, na altura. Depois, passei à Sétima Colina, em Lisboa, e à questão dos Sete Povos na América do Sul; fui andando, andando, e agora o conceito talvez que sinta mais próximo, mais fascinante, é a própria definição de território na Amazónia, aqui tão perto.

Ainda fazendo uma conexão com a pergunta anterior, vê alguma identidade entre suas pesquisas (que busca privilegiar os seres em sua espacialização) e o chamado naturalismo epistemológico – uma corrente de pensamento que surgiu já no tempo dos pré-socráticos, mas que foi retomado com muita força nos anos 50 do século XX como uma espécie de reacção à concepção que se poderia chamar de frege-wittgensteineana (concepção esta que, mesmo correndo o risco de simplificá-la pode-se dizer que privilegia a linguagem e deixa de lado as “falas” do mundo, os “dizeres dos corpos”, desconsiderando os afectos, em suma)?

Não sei como é, talvez até nem seja procurado. Quer dizer, no momento pode ser uma consequência, consequência de outras procuras. Mas confesso que já estou cansada, para poder continuar. Para terminar, formularia o desejo de continuarmos ligados e de realmente se possibilitar um elo de trabalho, com corpo e alma, entre Lisboa e Cuiabá.

 

(1) Atalaia-Internundos , (nº 6-7, Lisboa: Univ. de Lisboa, 2002,) e Episteme (nº 15, Porto Alegre: URGS, 2003). Além da colaboração no www.triplov.com, ver também:

I - Formas de viver, formas de pensar, formas de habitar

– ciências, técnicas e saberes

( www.saberes.no.sapo.pt e www.fazeres.no.sapo.pt);

sub-projecto:

- Formas de viver, formas de fazer, formas de saber

– fazeres com saberes

( www.fazercomsaber.no.sapo.pt e www.saberfazer.no.sapo.pt)

II - As ciências modernas à descoberta do mundo

- sub-projectos:

- O espaço e o tempo no Japão

(www.triplov.no.sapo.pt) ;

- A territoralização científica da Amazónia (sécs. XVIII-XXI)

(www.amazonia.no.sapo.pt) ;

- Viagens com destino nas ciências

(wwwcienciaeviagem.no.sapo.pt ;