Nos meados do século XX, a Exposição Átomos para a Paz constituiu um evento destacado em Lisboa e Madrid(2).
Organizada pela Junta de Energia Nuclear e pelos serviços de infomação da Embaixada dos Estados Unidos da América, nos pavilhões do ginásio e da piscina do Instituto Superior Técnico, inaugurada com a presença de 4 ministros, 2 subsecretários, embaixador dos EUA, membros do corpo diplomático, presidentes da Junta de Energia Nuclear (JEN) e do Instituto de Alta Cultura (IAC), director do Instituto Superior Técnico (IST) e do Laboratório Nacional de Energia Civil (LNEC), etc., em Lisboa, a exposição iniciou-se com discursos enaltecendo os progressos da ciência em favor de uma Humanidade mais próspera e vangloriando a colaboração luso-americana: «o Mundo cruzou o limiar da Idade Atómica. Se esse facto é para bem ou para mal é a nós que cabe decidir. Espero que, com a ajuda de Deus, tenhamos a sabedoria de escolher acertadamente» - disse o encarregado de Negócios da Embaixada, a dada altura.
Com entrada inteiramente livre, contou, logo no primeiro dia, com perto de 6000 visitantes; o que revela já por si uma grande capacidade mobilizadora da organização e uma enorme disponibilidade por parte do público. As infra-estruturas, por sua vez, foram cuidadosamente montadas e usaram meios muito diversificados, em prol de uma transmissão profissional e convincente. É disso exemplo, poderem os visitantes beneficiar de informações dadas por monitores, bolseiros do IAC, ou por engenheiros especializados, etc.. Acrescente-se, desde já, que, devido à frequência, a exposição esteve aberta de 6.10 a 11.11.1956, logo duas semanas mais do que fora previsto.
Na capa do catálogo (3), com destacadas minúsculas, uma única palavra - «átomo», a mesma palavra que sobressaía através das estruturas de metal colocadas na escadaria do IST; depois, em epígrafe, lê-se: «tendo a era atómica avançado a passos de gigante, é indispensável que cada um tenha uma ideia, pelo menos relativa, do alcance deste importante desenvolvimento que a todos afecta» (Átomo, Lisboa, Bertrand (Irmãos), 1956, p. 3); na páguina seguinte, uma fotografia do Presidente Eisenhower falando nas Nações Unidas. Editada pela Bertrand (Irmãos), bastante documentada com esquemas e fotografias, a brochura (50000 exemplares) inclui: «primeiras noções de Física Nuclear», «o reactor», «a construção de um reactor» (lembre-se que um dos grandes consequências desta exposição foi o reactor de Sacavém), «radioisótopos», «os radioisótopos na indústria», «os radioisótopos na agricultura» e «os radioisótopos na Medicina».
Instalada na Cidade Universitária de Madrid, perto da sede da Junta de Energia Nuclear, os «Átomos en Acción» ocupavam 1000 m2 e correspondiam perfeitamente à ideologia franquista, há vinte e cinco anos no poder. Dando sequência a um processo glorioso - 19 países, 6 milhões de pessoas - este evento largamento divulgado, teve a seu favor uma publicidade com frutos. Muita gente acorreu: 80000 visitantes ao longo de um mês. Dentro do programa houve cursos intensivos para alunos de bacharelato provenientes de todo o país (total: 8176 jovens), sendo as aulas dadas por professores de liceu, devidamente treinados nos EUA. Houve ainda outros cursos, conferências e seminários orientados por especialistas americanos. Enfim, um triunfante sucesso em termos de mundialização e popularização das ciências.
Na comunicação social portuguesa, o acontecimento começou na véspera, por ter havido uma visita especialmente dirigida para os jornalistas e pelo facto de o Diário de Notícias, por exemplo, lhe dedicar uma abordagem meticulosa, porventura uma das mais elaborada, com o subtítulo de «Uma exposição reveladora dos benefícios da aplicação construtiva da energia nuclear» (DN, 5.10.56, pp. 1-2). Esta «exposição-tipo do nosso tempo» (DN, 5.10.56, p. 1), incluía uma introdução histórica com certo pormenor, aspectos de índole mais teórica e suas aplicações, e ainda uma secção dirigida para a riqueza nacional em minério e urânio. Tudo apresentado em painéis de conteúdo acessível, com muitos livros e até filmes. Interiorizando a ideia que estes actos de exibir, em ciência e tecnologia, são movidos por «intuitos de divulgação - e não para técnicos e cientistas» (DN, 5.10.56, p. 1), por isso precisando de formas eficazes para transformar a motivação em interesse, são indicados vários tópicos, com relevo para a função construtiva da energia nuclear.
A importância da exposição, nomeadamente no dia posterior ao acto inaugural, foi referida com destaque pelo Diário de Notícias, Diário de Lisboa e O Século, todos da capital. Também alguns jornais nortenhos (ex: Jornal de Notícias) lhe concederam a primeira página. Dias depois, este jornal portuense apresentava um editorial, O monstro atómico, onde se misturavam pavores reais, expectativas cépticas e medos propagados pela ficção, através de uma escrita viva e expressiva. Ramos de Almeida descreve sensações veiculadas pelo filme O monstro dos tempos perdidos e termina desejando que «o Homem jamais se transformará no Monstro Atómico, antes saberá colocar a energia atómica ao seu próprio serviço, conquistando uma Nova Era para a sua História e nâo recuando aos remotos Tempos Perdidos» (JN, 18.10.1956, p. 2).
A partir de então, diga-se de passagem, as informações sugerem uma «cartilha» noticiosa monótona, de tão comum e repetitiva, mas que servia, sem dúvida, para chamar a atenção. Frequentemente anunciada em caixa, com destaque para as horas de abertura. É ainda significativo que, ao longo de todo o tempo, o Diário de Notícias e O Século tenham assinalado a existência de sessões especiais (ex: sessões dirigidas para médicos, oficiais do exército, da armada e dos Altos Estudos Militares, agrónomos e estudantes de agronomia, engenheiros e estudantes de engenharia, funcionários superiores das companhias de Tabaco, Mobil e Vacuum, residentes americanos dispondo de guias falando inglês, etc.) ou a visita de alunos de liceu (ex: Liceus Camões (1000 alunos), Passos Manuel e Gil Vicente).
O estilo é descritivo, sintéctico e sumário, mas deixa transparecer os efeitos obtidos pela espacialidade ampla, aparato na montagem e requintes expositivos. Aspectos a que a capital portuguesa não estava habituada de todo.
O Presidente da República visitou-a a 23.10.1956. No dia seguinte, redobraram as notícias com direito a primeira página e fotografia. Acrescente-se que no cabeçalho de O Século também é destacado isto: «Foi escolhida Viena de Áustria para sede da Agência de Energia Atómica» (S, 24.10.1956, p. 1). Aliás, é importante notar que os jornais consultados vão apresentando frequentemente matérias políticas ou científicas, provindas do estrangeiro e associadas à energia nuclear.
De acordo com os objectivos de modernização que andavam no ar, a exposição constituiu um período privilegiado para os jornais espanhóis mostrarem com optimismo o que haveria a esperar dos avanços provenientes do mundo científico-tecnológico. Os textos equivalem a uma campanha eficaz em prol das conquistas ligadas às actividades de I&D (ex: Informaciones, Madrid, 22.4.1964, p. 1).
Na verdade, revelaram-se em uníssono a favor do mais asinalado dos aspectos: o carácter pacifista da nova fonte de energia. Aspecto difundido pelos meios de comunicação e pelo discurso científico, como foi o caso do conceituado físico Carlos Sánchez del Rio, cujo tom de especialista só manifestava certezas e não dúvidas, se é que as tinha (cf. Ordoñez e Sánchez-Ron, p. 45). Tendo presente estas datas - a Comissão de Estudos de Energia Atómica tinha sido criada em 1948, a Junta de Energia Nuclear datava de 1951, o reactor Jen-1 foi instalado em 1956 - a série de artigos, sob o título España, atómica, publicados no Pueblo de Madrid entre 25 e 29.6.1964, torna-se mais compreensível, quando procura sossegar a população perante o facto da «utilização industrial da energia nuclear em Espanha [ir] tomando cada dia maior amplitude ao iniciarem-se várias centrais nucleares» (P, 25.6.1964, p. 30). Analisando os efeitos da radiactividade e anotando as medidas de segurança adoptadas, as potencialidades são tais que se pode dizer que «o átomo já é aliado da paz» (P, 26.6.1964, p. 22). A retórica de Juan Rodriguez Ruiz procura retirar argumentos, com base em testemunhos colhidos entre cientistas e técnicos, para concluir, no fim do terceiro artigo: «em Espanha a energia atómica já não é preocupação exclusiva do Estado nem segredo militar: é uma ciência aberta a muitas possibilidades e que há-de marcar uma nova orientação na formação da juventude» (P, 27.6.1964, p. 22). O último tema - «a ciência nuclear substituirá a formação humanística por um conteúdo mais técnico» (P, 29.6.1964, p. 25) - culmina com uma aposta optimista, perspectivando-a no contexto de mudanças sociais e culturais, onde as ciências e tecnologias terão um papel relevante. Apesar do que apurámos sobre a situação em Lisboa, não conseguimos resposta decisiva para uma pergunta de fundo: evento localizado num país movido pelo Terreiro do Paço ou acontecimento com alcance nacional?
Esta pergunta aumenta em sentido, quando se tem presente como os conteúdos traduzem uma aliança entre poder e saber, em favor do primeiro termo. Na verdade, embora o alcance científico não seja ignorado, os pontos relevantes incidem sobre o político. Facto onde se conjugam, quer elementos intrínsecos à comunicação, quer nexos da mensagem dignos de referência: a estratégia do país emissor - os Estados Unidos da América - e a dependência dos países receptores - neste caso, Portugal e Espanha entre os muitos países que acolheram a exposição itinerante - têm uma natureza mista, mas o maior peso da intencionalidade e da receptividade recai na esfera política.
A imprensa portuguuesa da época era censurada, provinciana, repetitiva e demasiado centrada no modelo narrativo. Controlada, enquanto perspicácia analítica ou crítica, estava demasiado limitada para favorecer conteúdos aprofundados, à altura de um tema como este. Todavia, não deixa de ser estranho que o discurso dominante não tenha encontrado formas de abrilhantar o evento através de mais editoriais/artigos de fundo, escritos por cientistas portugue-ses/estrangeiros. Surpresa ainda maior se tivermos presente como os vários Centros de Estudos da Comissão de Estudos da Energia Nuclear (organizada pela direcção do IAC em 1952) integravam cientistas reconhecidos, entre os quais alguns dos poucos portugueses doutorados, e que a Junta de Energia Nuclear (criada pelo decreto-lei nº 39580 de 29 de Março de 1954) sempre se rodeara de um estatuto institucional impositivo, procurando manter uma visibilidade social marcada pelo sucesso. Perdeu-se uma oportunidade única de aumentar a mundialização e popularização à escala do resto do país por falta de melhor gestão dos recursos? Ou isso pouco interessava em termos de «Alta Cultura»? Ou ainda tal acontecia porque queriam manter a ignorância forçada, mais estabilizante para a ditadura?
As entrelinhas permitem induzir que, em termos de conhecimentos científicos e tecnológicos, este foi um dos primeiros eventos publicitários importantes, em Portugal, dentro de um contexto de mundialização das ciências. E também o espectáculo mais marcante depois da Exposição Colonial, num contexto de popularização. Contrastando, e de que maneira, com saberes impostos dentro de uma visão fechada e conservadora, muito marcada por estigmas endógenos, internalistas e nacionalistas (1940), a visualização do desenvolvimento passava a estar mitificada por contributos esperançosos de bem-estar ou por sucessos humanitários e planetários (1956). Um progresso autêntico e indiscutível. Durante estes dezasseis anos, o país continuava a viver a ambiguidade entre o «velho e o novo» - a tradição e o cientismo - mas a dependência ideológica escondia, desta vez, realidades com outra natureza intrínseca (matérias) e muito mais sofisticadas (formas). A imprensa espanhola, por sua vez, assumiu completamente a estratégia de seduzir os leitores, transformando-os em espectadores interessados e, porventura, em agentes da era nuclear. Esta missão era tanto mais delicada, quanto seria preciso encontrar prosélitos entre um povo dilacerado pela Guerra Civil. A retórica teve, pois, de recorrer a raciocínios cuidados e argumentos convincentes, no sentido de impor uma legitimidade. É que esta legitimidade teria de convencer quem sentia as sequelas dos terrores bélicos e era convidados a acreditar, agora, não só na existência real de átomos, como também nas potencialidades dos Átomos para a Paz. |