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ANA LUÍSA JANEIRA
As expos de Sevilha e Lisboa

HÁ 10 ANOS
na Península Ibérica, mais uma exposição universal

PARA UMA ARQUEOLOGIA EPISTÉMICA
DAS EXPOS DE SEVILHA E LISBOA - INDEX

III - As brechas da Filosofia das Ciências encontram ainda um momento relevante da mundialização e  popularização das ciências (1) na Península Ibérica através da exposição «Átomos para a Paz» (Lisboa 1956, Madrid 1964)

Nos meados do século XX, a Exposição Átomos para a Paz constituiu um evento destacado em Lisboa e Madrid­­(2).

Organiza­da pela Junta de Energia Nuclear e pelos serviços de infomação da Embaix­ad­a dos Estados Unidos da América, nos pavilhõ­es do ginásio e da piscina do Institu­to Superior Técnico, inaugur­ada com a presen­ça de 4 ministros, 2 subsecr­e­tários, embai­xador dos EUA, membr­os do corpo diplo­má­tic­o, presiden­tes da Junta de Energia Nuclear (JEN) e d­­o Instituto de Alta Cultura (IAC), director do Institut­o Superior Técnico (IST) e do Labora­tór­io Nacio­nal de Energia Civil (LNEC), etc., em Lisboa, a exposição iniciou-se com discursos enaltecendo os progres­sos da ciência em favor de uma Humanidade mais próspera e vangloriando a colaboraç­ão luso-americana: «o Mundo cruzou o limiar da Idade Atómica. Se esse facto é para bem ou para mal é a nós que cabe decidir. Espero que, com a ajuda de Deus, tenha­mos a sabedo­ria de escolher acertada­mente» - disse o encarregado de Negó­cios da Embai­xada, a dada altura.

Com entrada inteira­mente livre, contou, logo no primei­ro dia, com perto de 6000 visitant­es; o que revela já por si uma grande capaci­dade mobili­zadora da organização e uma enorme disponibilida­de por parte do públic­o. As infra-estruturas, por sua vez, foram cuidadosamente montadas e usaram meios muito diversificados, em prol de uma transmissão profissional e convincente­. É disso exem­plo, podere­m os visitantes benefici­ar de inform­aç­ões dadas por monito­res, bolseiro­s do IAC, ou por engenheir­os especializ­ad­os, etc.. Acrescente-se, desde já, que, devido à frequência, a exposi­çã­o esteve aberta de 6.10 a 11.11.1956, logo duas semanas mais do que fora previsto.

Na capa do catálogo (3), com destacadas minúsculas, uma única palavra - «átomo», a mesma palavra que sobressaía através das estruturas de metal colocadas na escadaria do IST; depois, em epígrafe, lê-se: «tendo a era atómica avançado a passos de gigante, é indispensável que cada um tenha uma ideia, pelo menos relativa, do alcance deste importante desenvolvimento que a todos afecta» (Átomo, Lisboa, Bertrand (Irmãos), 1956, p. 3); na páguina seguinte, uma fotografia do Presidente Eisenhower falando nas Nações Unidas. Editada pela Bertrand (Irmãos), bastante documentada com esquemas e fotografias, a brochura (50000 exemplares) inclui: «primeiras noções de Física Nuclear», «o reactor», «a construção de um reactor» (lembre-se que um dos grandes consequências desta exposição foi o reactor de Sacavém), «radioisótopos», «os radioisótopos na indústria», «os radioisótopos na agricultura» e «os radioisótopos na Medicina».

Instalada na Cidade Universitária de Madrid, perto da sede da Junta de Energia Nuclear, os «Átomos en Acción» ocupavam 1000 m2 e correspondiam perfeitamente à ideologia franquista, há vinte e cinco anos no poder. Dando sequência a um processo glorioso - 19 países, 6 milhões de pessoas - este evento largamento divulgado, teve a seu favor uma publicidade com  frutos. Muita gente acorreu: 80000 visitantes ao longo de um mês. Dentro do programa houve cursos intensivos para alunos de bacharelato provenientes de todo o país (total: 8176 jovens), sendo as aulas dadas por professores de liceu, devidamente treinados nos EUA. Houve ainda outros cursos, conferências e seminários orientados por especialistas americanos. Enfim, um triunfante sucesso em termos de mundialização e popularização das ciências.

Na comunicação social portuguesa, o acontecimento começ­ou na vésper­a, por ter havido uma visita especialmente dirigida para os jornali­stas e pelo facto de o Diário de Notíci­as, por exemplo, lhe dedicar uma abordag­e­m meticulosa, porven­tura uma das mais ­elaborada, com o subtítulo de «Uma exposição revela­dora dos benefí­cios da aplicação construtiva da energia nuclear» (DN, 5.10.56, pp. 1-2). Esta «exposição-tipo do nosso tempo» (DN, 5.10.5­6, p. 1), incluía uma introdução histórica com certo pormenor, aspectos de índole mais teórica e suas aplicações, e ainda uma secção dirigida para a riqueza nacional em miné­rio e urânio. Tudo apresen­ta­do em painéis de conteú­do acessí­vel, com muitos livro­s e até filmes­­. Interiorizando a ideia que estes actos de exibir, em ciência e tecnologia, são movidos por «intuitos de divulga­ç­ão - e não para técnico­s e cientista­s» (DN,  5.10.5­6, p. 1), por isso precisando de formas eficazes para­ transformar a motiva­ção em interesse, são ­­indica­dos vários tópicos­, com relevo para a função constru­tiva da energia nuclear.

A impor­tân­cia da exposi­çã­o, nomead­amente no dia posterior ao acto inaugural, foi referi­da com desta­que ­­­pelo Diário de Notícias, Diário de Lisboa e O Século, todos da capital. Também alguns jornais nortenh­os ­­(ex: Jornal de Notícias) lhe concederam a primeir­a página. Dias depois, este jornal portuense apresentava um editorial, O monstro atómico, onde se misturavam pavores reais, expectativas cépticas e medos propagados pela ficção, através de uma escrita viva e expressiva. Ramos de Almeida descreve sensações veiculadas pelo filme O monstro dos tempos perdidos e termina desejando que «o Homem jamais se transformará no Monstro Atómico, antes saberá colocar a energia atómica ao seu próprio serviço, conquistando uma Nova Era para a sua História e nâo recuando aos remotos Tempos Perdidos» (JN, 18.10.1956, p. 2).

A partir de então­, diga-se de passage­m, as informa­ç­õ­es ­­­­s­u­ge­re­m uma «carti­lha» noticio­sa monótona, de tão comum e repetiti­va­, mas que servia, sem dúvida, para chamar a atenção. Frequente­me­nt­e anuncia­da em caixa, com destaque para as horas de abertura. É ainda significativo que­, ao longo de todo o tempo, o Diário de Notícias e O Século tenham assinalado­ a existência ­de sessões especia­is (ex: sessões dirigi­das para médico­s, oficiais do exército, da armada e dos Altos Estudos Militares, agrónom­os e estudantes de agronomia, engenhe­ir­os e estudantes de engenhari­a, funcio­ná­rios superi­or­es das compan­hi­as de Tabaco, Mobil e Vacuum, resident­es americano­s dispondo de guias falando inglês, etc.) ou a visita de alunos de liceu (ex: Liceus Camões (1000 alunos), Passos Manuel e Gil Vicente).

O estilo é descriti­vo, sintécti­co e sumário, mas deixa transpa­rec­er os efeitos obti­dos pela espacia­lida­de ampla, aparato na monta­gem e requintes expositivos. Aspecto­s a que a capital portuguesa não estava habitua­da de todo.

O Presidente da República visitou-a a 23.10.1956. No dia seguinte, redobraram as notícias com direito a primeira página e fotografia. Acrescen­te-se que no cabeçalho de O Século também é destacado isto­: «Foi escolhida Viena de Áustria para sede da Agência de Energia Atómi­ca» (S, 24.10.1956, p. 1). Aliás, é importante notar que os jornais consultados vão apresentando frequentemente matérias polític­as ou científicas, provindas­ do estrang­ei­ro e associadas à energia nuclear.

De acordo com os objectivos de modernização que andavam no ar, a exposição constituiu um período privilegiado para os jornais espanhóis mostrarem com optimismo o que haveria a esperar dos avanços provenientes do mundo científico-tecnológico. Os textos equivalem a uma campanha eficaz em prol das conquistas ligadas às actividades de I&D (ex: Informaciones, Madrid, 22.4.1964, p. 1).

Na verdade, revelaram-se em uníssono a favor do mais asinalado dos aspectos: o carácter pacifista da nova fonte de energia. Aspecto difundido pelos meios de comunicação e pelo discurso científico, como foi o caso do conceituado físico Carlos Sánchez del Rio, cujo tom de especialista só manifestava certezas e não dúvidas, se é que as tinha (cf. Ordoñez e Sánchez-Ron, p. 45). Tendo presente estas datas - a Comissão de Estudos de Energia Atómica tinha sido criada em 1948, a Junta de Energia Nuclear datava de 1951, o reactor Jen-1 foi instalado em 1956 - a série de artigos, sob o título España, atómica, publicados no Pueblo de Madrid entre 25 e 29.6.1964, torna-se mais compreensível, quando procura sossegar a população perante o facto da «utilização industrial da energia nuclear em Espanha [ir] tomando cada dia maior amplitude ao iniciarem-se várias centrais nucleares» (P, 25.6.1964, p. 30). Analisando os efeitos da radiactividade e anotando as medidas de segurança adoptadas, as potencialidades são tais que se pode dizer que «o átomo já é aliado da paz» (P, 26.6.1964, p. 22). A retórica de Juan Rodriguez Ruiz procura retirar argumentos, com base em testemunhos colhidos entre cientistas e técnicos, para concluir, no fim do terceiro artigo: «em Espanha a energia atómica já não é preocupação exclusiva do Estado nem segredo militar: é uma ciência aberta a muitas possibilidades e que há-de marcar uma nova orientação na formação da juventude» (P, 27.6.1964, p. 22). O último tema - «a ciência nuclear substituirá a formação humanística por um conteúdo mais técnico» (P, 29.6.1964, p. 25) - culmina com uma aposta optimista, perspectivando-a no contexto de mudanças sociais e culturais, onde as ciências e tecnologias terão um papel relevante. Apesar do que apurámos sobre a situação em Lisboa, não conseguimos respos­ta decisi­va ­para uma pergunt­a­ de fundo: evento locali­zado num país movido pelo Terreiro do Paço ou acontecimento com alcance nacional?

Esta pergun­ta aumenta em sentido, quando se tem presente como os conteúdos traduze­m uma aliança entre poder e saber, em favor do primeiro termo. Na verdade, embora o alcance científi­co não seja ignorado, os pontos relevant­es incidem sobre o político. Facto onde se conju­gam, quer elementos intrínse­cos à comunicaç­ão, quer nexos da mensa­gem di­gnos de referên­cia: a es­tratégia do país emissor - os Estados Unidos da América - e a dependência dos países receptores - neste caso, Portugal e Espanha entre os muitos países que acolhe­ram a exposição itinerante - têm uma natureza mista, mas o maior peso da intencionalidade ­e da recepti­vidade recai na esfera política.

A imprensa portuguuesa da época era censurada, provin­ciana, repetiti­va e demasiado centrada no modelo narrativo. Controlada, enquanto perspicácia analítica ou crítica, estava demasiado limitada para favorecer conteúdos aprofundados, à altura de um tema como este. Todavia, não deixa de ser estranho que o discurso dominante não tenha encontrado formas de abrilhantar o evento através de mais editoriais­­/artigos de fundo, escritos por cientistas portugue-ses/estrangeiros. Surpre­sa ainda maior se tivermos presente como os vários Centros de Estudos da Comissão de Estudos da Energia Nuclear (organizada pela direcção do IAC em 1952) integra­vam cientist­as reconhe­ci­d­os, entre os quais alguns dos poucos portuguese­s doutorados­, e que a Junta de Energia Nuclear (criada pelo decreto-lei nº 39580 de 29 de Março de 1954) ­­sempre se rodeara de um estatuto instituci­o­nal impositi­vo, procurando manter uma visibilidade ­social marcada pelo suces­so. Perdeu-se uma oportuni­dade única de aumentar a mundialização e populari­zação à escala do resto do país por falta de melhor gestão dos recursos? Ou isso pouco interessa­va em termos de «Alta Cultura»? Ou ainda tal acontecia porque queriam manter a ignorância forçada, mais estabil­izante para a ditadura?

As entrelinhas permitem induzir que, em termos de conheci­mentos científi­cos e tecnológicos, este foi um dos primeiros eventos publicitários importantes, em Portugal, dentro de um contex­to de mundialização das ciências. E também o espectác­u­lo mais marcant­e ­­depois da Exposiçã­o Colonial, num contex­to de populariza­çã­o. Contrast­ando­, e de que maneira, com saberes impostos­ dentro de uma visão fechada e conserva­dora, muito marcada por estigmas endóge­nos, internalist­as e naciona­lis­tas (1940), ­a visualização do desenvolvim­en­to passava a estar mitifica­da por contributos esperançosos de bem-estar ou por sucess­os humanitári­os e planetá­rios (1956). Um progresso autênti­co e indiscutí­vel. Durante estes dezasseis anos, o país continua­va a viver a ambigui­dade entre o «velho e o novo» - a tradição e o cientismo -  mas a dependênci­a ideológica escondia, desta vez, realidades com outra natureza intrínseca (matérias) e muito mais sofistic­a­da­s (formas­). A imprensa espanhola, por sua vez, assumiu completamente a estratégia de seduzir os leitores, transformando-os em espectadores interessados e, porventura, em agentes da era nuclear. Esta missão era tanto mais delicada, quanto seria preciso encontrar prosélitos entre um povo dilacerado pela Guerra Civil. A retórica teve, pois, de recorrer a raciocínios cuidados e argumentos convincentes, no sentido de impor uma legitimidade. É que esta legitimidade teria de convencer quem sentia as sequelas dos terrores bélicos e era convidados a acreditar, agora, não só na existência real de átomos, como também nas potencialidades dos Átomos para a Paz.

(1) Síntese de um estudo de Ana Luísa Janeira, Ana Sucena Martins, Célia Domingues e Jorge Dias, alunos de Filosofia das Ciências, disciplina ministrada no Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências de Lisboa, no ano escolar de 1995-1996, preparado e ultimado no âmbito da Acção Integrada Luso-Espanhola E-17/95 - Fenómenos de transferência e de recepção da ciência no âmbito da Península Ibérica (século XX) - financiada pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas. Já publicado, sob o título A Exposição «Átomos para a Paz» na Península Ibérica (1956, 1964): Mundialização e Popularização das Ciências, em''Ingenium'', 6, 1998, Sada, pp. 169-173.

(2) O corpus desta parte do trabalho é constituído predominantemente por artigos de jornal. No caso português, até pelo tipo de notícias, adoptou-se um critério visando a extensão - jornais de Lisboa e alguns do Porto. No caso espanhol, seguiu-se um critério visando mais a compreensão - análise quase exclusiva de um artigo publicado ao longo de 4 dias (25-29 de Junho de 1964). Também foi utilizado um texto dactilografado de Javier Ordoñez e José M. Sánchez-Ron - Nuclear Energy in Spain. From Hiroshima to the sixties. A metodologia seguida não equivale, pois, a qualquer tipo de análise de contéudo de tipo comparativo. Em contrapartida, visa-se conseguir um enriquecimento epistemológico/hermenêutico do objecto em estudo - a exposição Átomos para a Paz na Península Ibérica - através de contributos da imprensa portuguesa e espanhola. Siglas: DN - Diário de Notícias, Lisboa, JN - Jornal de Notícias, Porto, S - O Século, LisboaP - Pueblo, Madrid.

(3) Agradece-se ao Professor Doutor João Caraça ter facultado o acesso a este catálogo.

 

ANA LUÍSA JANEIRA

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088.

Co-fundadora, primeira coordenadora e, actualmente, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral
Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt

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