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ANA LUÍSA JANEIRA
As expos de Sevilha e Lisboa

HÁ 10 ANOS
na Península Ibérica, mais uma exposição universal

PARA UMA ARQUEOLOGIA EPISTÉMICA
DAS EXPOS DE SEVILHA E LISBOA - INDEX

II - As brechas da Filosofia das Ciências procuram os primeiros momentos da arqueologia epistémica das Expos do século XX nas Grandes Exposições do século XIX

Londres (1851, 1862), Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900), Porto (1865), Viena (1873), Filadélfia (1876), Barcelona (1888), Chicago (1893), Bruxelas (1897) - que mundo revelam e que ciência exaltam estas Grandes Exposições? Pense-se na Europa como núcleo dinamizador, acrescente-se-lhe um continente americano que vai aderindo, juntem-se-lhe as colónias olhadas como fornecedoras de matérias primas e mercados potenciais, salpique-se o conjunto de orientalismos transformados em moda - temos os horizontes geográficos mais densos, por onde fervilham os gabinetes governamentais, as associações industriais com peso, as academias com maior dinamismo, os grupos intelectuais  ou artísticos e as tertúlias mundanas que fazem as grandes exposições do século XIX.

Países, muitas vezes em guerra, procurando formas de união, reais ou ilusórias, para exorcizar os confltos. Porque assim é, festejavam a Igualdade, Liberdade e Fraternidade (Paris 1889) ou a chegada de Colombo às Américas (Chicago 1893). Símbolos contraditórios, é bom lembrar, de aproximações históricas, nem por isso menos relevantes. Por isso, é possível que o momento da chegada e as impressões sequentes fiquem registadas por estas palavras, com ar de denúncia para a contradição: «quando entrámos pela primeira vez naquele vasto santuário das Ciências, das Artes e do Trabalho, ficámos absortos na contemplação de tantas maravilhas que de toda a parte e em todos os géneros excitavam a nossa admiração e entusiasmo. As nossas almas como que se expandiam em doces e íntimas alegrias ao examinarmos tantos prodígios da inteligência e do braço do Homem de toda a parte essa frenética ansiedade do belo, do útil, do grandioso e do sublime a revelar as aspirações, as tendências e os progressos da perfectibilidade a que aspira e para onde caminha a Humanidade! uma única coisa veio arrancar-nos a esse como que êxtase inefável em que a presença de tantas maravilhas nos tinha absortos; foi a contemplação da série de instrumentos de destruição e morte que se achavam expostos» (Carlos Augusto Pinto Ferreira et al., Relatório da Comissão dos Artistas de Lisboa acerca da Exposição Internacional de Londres em 1862, apresentado em 14 de Agosto de 1863,a sua Excelência, o Ministro das Obras Públicas, Comércio e indústria, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863, p. 7).

Por isso também, o lente da Escola Politécnica de Lisboa, Ponte e Horta, anota: «os visitantes não eram menos curiosos de inspeccionar no Palácio os produtos que significavam a vitória do trabalho moderno, do que admirar no Anexo os poderosos engenhos por intervenção dos quais eram obtidos. O ciclo da tarefa industrial perfazía-se naquele recinto. E posso afirmar, que tendo-se penetrado naquela gigantesca oficina, espécie de inferno de Dante, ficava-se como que subjugado, e mal se tinha força para prosseguir ou para recuar. Tanto era o prestigioso poder daquele santuário do trabalho! Quando o movimento penetrava em toda aquela galeria que se ia perder num horizonte longínquo, e que por um efeito óptico se estreitava com a distância para melhor se descobrir, estremecia-se de pasmo, pela grandeza do painel. Penetrava-se no santuário do trabalho, e assistia-se em pessoa aos sacrifícios do ídolo» (José Maria da Ponte e Horta - Relatório sobre a Exposição Universal de Paris, Máquinas a vapor, Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, p. 151).

A tal ponto que o mesmo autor acrescenta: «dir-se-ia que as rivalidades das nações tinham passado às máquinas e que cada uma procurava à força de empenho e boa vontade dar relevo ao seu inventor, nome ao seu fabricante, honra ao seu país e glória ao seu tempo» (José Maria da Ponte e Horta - Relatório sobre a Exposição Universal de Paris, Máquinas a vapor, Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, p. 152). Ou ainda: «as grandes nações industriais podem contentar-se no estudo de uma exposição universal, com a observação e comparação dos seus recíprocos progressos; porém um povo, que apenas começa a iniciar-se no trabalho industrial, precisa de conhecer os rudimentos da indústria, carece de minuciosas notícias, não só sobre os resultados, mas principalmente sobre os meios de produção» (Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, Relatório sobre a Exposição Universal de Paris, Tomo I, Artes Químicas. Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, p. III).

A luxúria expositiva comporta martelos, ventiladores, teares, prensas e tornos. Na verdade, à medida que o visitante percorre estes espaços e vê a matéria-prima mudar e evoluir, «a lã transforma-se em estofo, o algodão em lavor, a chapa em moeda, a massa inerte em estátua, o pensamento em jornal; o pano, o tapete, a renda, a gravura, a litografia, tudo ali toma corpo e tudo prima pela velocidade, bom acabamento e perfeição» (José Maria da Ponte e Horta - Relatório sobre a Exposição Universal de Paris, Máquinas a vapor, Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, p. 152).

Capitais dimensionadas pela segunda revolução industrial, mantidas por urbanismos cheios de marcas tradicionais precisando de área para crescer. Razão, entre outras, porque os majestosos pavilhões, mesmo de encantar, sejam construídos nos limites de uma condenação quase imediata: a demolição ou o fogo.

Elites enebrecidas pelas novidades que parecem sem termo, embora a grande maioria das gentes continue, no quotidiano, à margem das palmas efusivas das inaugurações. Daí que estes espaços mostrem à evidência como se podem montar, com grandiosidade, beleza e sucesso, as forças e fraquezas de um determinado esquema civilizacional.

Tudo cenários, dir-se-á. É bem verdade que estes eventos nascem de uma quantidade de conceitos fragilizados, passíveis de serem ligados a tantos outros, como fantasias efémeras, sonhos perecíveis, projectos megalómanos. Associações acontecendo com propriedade e rigor. Não obstante, passam por aqui, não se duvide, mostras efectivas do que de melhor se produziu em criatividade, à escala maior, entre 1851 e 1900.

Este mundo, repita-se, é uma circunstância global predominantemente europeia, com algumas saídas e entradas para o além-mar. A qual vive assombrada pelos adquiridos científicos e técnicos, na sua expressão industrial mais viva.
 
Lado-a-lado, o engenho teórico-experimental, com os aparatos laboratoriais respectivos, sempre envolvidos por umas tantas engenharias. Lado-a-lado, sequências do sistema produtivo, no que ele tem de mais avançado, ou de produtos já acabados, espacializados segundo modelos classificativos, onde prevalece o objecto distribuído por grupos e sectores.

Por toda a parte, o estigma maciço das máquinas, com especial relevo nos pavilhões que as acolhem com estatuto de presença privilegiada. Por toda a parte, a mensagem da produção, identificada com o lucro, sem esquecer certas preocupações de ordem social. Facto individualizado que possibilita uma visibilidade própria: o percurso expositivo está montado para que a energia produtiva, a nível do emissor, transmita um dinamismo propulsivo e optimista ao receptor. Por isso, o público - elite financeira, turista intelectual, cooperação operária, visitante lúdico, etc. - completa a visita com uma sensação muito especial: ser homem é pertencer a uma comunidade geradora de futuro, destinada a progredir na redundância do êxito.

Para alguns, a fé no futuro continua a ser uma constante: «qualquer que tenha sido a magnificiência das exposições precedentes, elas são inevitavelmente eclipsadas pelas novas exposições que balizam a via aberta à humanidade e resumem as suas sucessivas conquistas» (Exposition Universelle Internationale de 1900 à Paris, Actes Organiques, Paris, Imprimerie Nationale, 1896, p. 6, apud LEU, p. 105)

Paradoxalmente, ou talvez não, a mística do trabalho em posição de destaque. Este modo como o racionalismo investe na ocupação do tempo, quando o domestica pela disciplina normativa de horários rígidos ou sirenes, retira das grandes exposições, também chamadas «festas do trabalho», momentos de culto com ritmos especiais. O culto constrói-se no interior de pavilhões=catedrais, com comissários reais/ imperiais=oficiantes, embelezados por espaços veneráveis=estéticas religiosas, numa sequência periódica=ritos entre trabalhos e dias.

Os regulamentos e relatórios, catálogos, notícias, recortes publicitários ou panfletos, que abundam em qualquer circunstância, exprimem a contextualidade dos eventos e suas repercussões.

Junte-se ao demais, belas-artes sobranceiras, artesanatos sofisticados, vidros requintados, ourivesarias e porcelanas, mobiliários sugestivos, e ter-se-á uma outra vertente - o mundo artístico e decorativo, o conforto e o belo útil, entre a tela imensa de Delacroix e a jóia art nouveau.

Assim, atenda-se ao que se escreve nos Aspecto General del Recinto y Palacios; Inauguración presidida por S.M. el Rey Alfonso XIII y S.M. la Reyna Regente, logo em 1888: «quem tenha visitado Barcelona seis meses antes da Exposição e a percorra hoje, por certo terá dificuldade em acreditar que aquilo que vê é a realidade, que tenham sido esforços humanos a conseguir resultados tão estupendos. Oito meses se manteve a nossa Capital em contínua festa, em movimento anormal e extraordinário». (José Serrate, Aspecto General del Recinto y Palacios; Inauguración presidida por S.M. el Rey Alfonso XIII y S.M. la Reyna Regente, in «Estudios sobre la exposición de Barcelona, inaugurada en 20 de Mayo y cerrada en 9 de Diciembre, s.l., M.I.C.L., 1888, p. XXXI).  A concepção geral está adaptada ao local onde foi realizada, o Parque de la Ciudadela. Compreende várias construcções, das quais importa ressaltar o Palacio de la Industria, o Palacio de Ciencias, o Palacio de Agricultura e o Palacio de Belas Artes. A nível científico, a Química Orgânica mostra-se vitoriosa, marcadamente por via do incremento alemão, enquanto que, a nível económico e político, a definição da província catalã como área industrial espanhola de grande plano depende muito deste evento.

Neste particular, o mundo das formas veiculado pelas grandes exposições mostra facetas buriladas pela criatividade mais sublime, enquanto que a sucessão dos estilos é interpretada, um tanto distorcidamente, como nota de progresso também. Se os Palácios de Cristal cintilam por fora, entre superfícies de vidro e estruturas férreas, por dentro cintilam os resultados máximos a que chegou o género humano.

Não admirará, por certo, que se lembre quanto esta situação não é inteiramente pacífica, pois foi merecendo posicionamentos diferentes, por parte do espírito crítico, ao longo dos anos.

Na verdade e apesar da tendência contra só poder ser pensada nos limites impostos pelo sistema epistémico dominante, o espírito crítico do século XIX concretizou várias atitudes de discordância e cepticismo face a estes espectáculos.

Apesar de tudo, Charles Baudelaire não deixa de se interrogar: «perguntai a qualquer bom Francês que lê todos os dias o jornal no seu botequim o que entende por progresso, responderá que é o vapor, a electricidade e a iluminação a gaz, milagres desconhecidos dos Romanos, e que estas descobertas testemunham plenamente a nossa superioridade sobre os antigos: quantas trevas neste infeliz cérebro e quantas coisas de ordem material e de ordem espiritual ele tem bizarramente confundidas! O pobre homem está de tal modo americanizado pelos seus filósofos zoocratas e industriais que perdeu a noção das diferenças que caracterizam os fenómenos do mundo físico e do mundo moral, do mundo natural e sobrenatural.... Mas onde está, por favor, a garantia do progresso para o amanhã?.... Onde está esta garantia? Não existe, digo, senão na vossa credulidade e na presunção....Deixo de lado a questão de saber, se subtilizando a humanidade na proporção dos gozos novos que lhe traz, o progresso indefinido não seria a mais engenhosa e cruel tortura» (Charles Baudelaire - Exposition Universelle, 1855, les Beaux-Arts, Paris, Éditions Gallimard, 1976, p. 588, apud LEU, p. 38).

Justificações de tipo económico, razões de Estado, polémicas urbanísticas, querelas artísticas, denúncias da classe operária, sempre acompanharam os projectos arquitectónicos, as inaugurações faustosas, as recepções das representações estrangeiras, com discursos mordazes: bailes, congressos, reuniões culturais, espectáculos foram motivo de chacota. Soam assobios e pateados por parte de muitos. A ponto de não haver exposição que não tivesse sido desrespeitada e achincalhada.

No entanto, lá continuaram a ser planeadas e executadas, mesmo quando o país de acolhimento vivia uma grande crise, a paz mundial estava em perigo ou o bom-senso comprovava o seu contra-senso. Porquê? Porque o capitalismo emergente percebia quanto as exposições tratavam a mercadoria multiplicável como um meio de onde poderia retirar dividendos; percebia igualmente como o cenário concertado e controlado, logo diferente da espontaneidade popular, evoca emoção nas multidões, melhor ainda quando têm o cenário de comemorações e centenários. Percebia, finalmente, porque se jogavam ali atributos adequados à especificidade da memória colectiva, sempre que ela se servia do passado para justificar historicamente as leis do mercado a que obrigava o presente. Do interior são sistemas de pensamento, interesses financeiros, estádios sociais, discursos empolgados, um conjunto de coisas e palavras que acabam por actuar como condicionantes, ou modelos, intervindo por força de planos associados ao ideário positivista. Deste ideário ressaltam orientações de princípio em torno do sempre invocado género humano. No abuso, a época expressa ou deturpa, com imensa frequência, a ideia alargada de próximo.

A utopia novecentista impõe a sedução mobilizadora conseguida com projectos e planos para cidades ideais, espelhadas em paraísos terrestres, com espaços e tempos concretos e delimitados, como o são as Grandes Exposições. Envolve-as como Festas do Trabalho, Templos da Ciência, Catedrais das Técnicas. Paralelamente, o culto do progresso impõe a sacralização destes símbolos maiores, através de inaugurações pomposas e cerimónias faustosas de encerramento. As conquistas da indústria definem a novidade e o obsoleto dos sistemas ou métodos produtivos, máquinas ou mercadorias. Quando coroada pelas Artes, a estética do produto seduz mais ainda, e geram-se condições para a emergências das Artes Decorativas.

Concluindo, pode afirmar-se que «já no final do século XIX, aparecem a especialização e a diversificação. Movimento e dinamismo que fazem aumentar uma preocupação permanente ao longo de cinquenta anos: contrariar a tendência dos museus que favorecem um público passivo. No início do século XX, algumas coisas principiam a mudar, ainda que lentamente: a legitimação pela necessidade de preservar começa a definir-se, anuncia-se um novo regime da memória, o futuro torna-se menos visível, com certos rompimentos e caminhando no sentido de afastar a ideia de um princípio orientador e explicativo único. o carácter efémero das Exposições Universais e dos seus múltiplos pavilhões, lucra de ser submetido a uma reflexão de tipo epistemológico, segundo um modelo metodológico com três momentos principais - descrição de espaços, especificação de  enunciados nos discursos científicos e tecnológicos, definição do sistema epistémico vigente» (Ana Luísa Janeiras - As exposições universais do século XIX: pavilhões efémeros, progresso sem fim. in MOURÃO, José Augusto, MATOS; Ana Maria Cardoso de; GUEDES, Maria Estela, '' O Mundo Ibero-americano nas Grandes Exposições '', Lisboa, Vega, 1998, pp. 28).

ANA LUÍSA JANEIRA

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088.

Co-fundadora, primeira coordenadora e, actualmente, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral
Calçada Bento da Rocha Cabral, 14 - 1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt

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