Amostragem

PEDRO SILVA SENA


Edital 

Nos termos das coisas como estes devem ser, declaramos o fim de todas as regras das quais somos a excepção.

 

Declaração 

Um homem pode ter toda a sua fortuna no bolso –

um pente, um passe de autocarro, um cartão de utente

– e dispô-la em cima de um balcão de atendimento

como se guardasse as chaves de todas as portas do mundo.

 

Adivinha 

Qual é a coisa, qual é ela,

Que faz gorjear os canários e os periquitos de Alfama?

Que faz reflorir um cravo cortado num copo de água?

Que faz cantar o servente, sobre o andaime alto, no pó da obra?

 

A 

A, para abrir, amanhecer, abraçar, acometer, amar, adormecer, abocanhar um naco de vida, A, mas são verdes, esse A que não consegue dizer o que devia, desculpa, A, admirado, A, exclamado, A, declamado, A, de espanto, de fúria, de enlevo, A, para organizar o alfabeto e ordenar os seres e as coisas, A, pois, outro A, malandro A, que não quer dizer mais do que diz, fugidio, A, som aberto e redondo, A, letra séria e assertiva, A, muitos Às, riso, espirro, a a a, pequenos às, A, claro, vogal.

 

B 

O bê é redondo como ele próprio, curvilínea consoante:

quando nasces és Bebé, quando cresces ao menino dão uma Bola e à menina uma Boneca, o rapaz aprende a chutar à Baliza e a rapariga a carregar a Barriga, quando cresces ainda mais trabalhas Bem acima do teu salário e pagas Bastante, quando bebes, porra é Borra – querias Beaujolais? – , quando te arrelias, uma Bofetada, quando tens fome, há Bifanas, ou Bife promocional, quando amas Beijas, quando vês televisão Bocejas, quando gostas é Bom, quando te batem é à Bastonada, (quando não te chutam com a Bota) quando te matam é à Bala ou à Bomba. 

 

C

Cê de cadência. Cê de cisão. Cê de colagem. Cê, herança latina, consoante egrégia, o nome marginal do impronunciável, conceito conspícuo.

 

D 

O d é uma consoante enérgica, condutora de verbos, veículo de ordens: dar, (des)dizer, duvidar, dividir, denegar, dirimir, divulgar, debater, dirigir, documentar, decidir, deportar, divergir, declarar, desfazer, etc..

 

Os poemas aqui publicados foram extraídos de Teoria do Crescimento – Letra à Letra. 2018


Pedro Silva Sena (Lisboa, 1975). Investigador em ciências sociais, tradutor, trabalhador precário no sector dos serviços. Fundou e dirige a revista-blogue de poesia Inefável e as Edições Bicho de Sete Cabeças. Obras publicadas: Cancioneiro do Absurdo (1999); Poemas de Cal (2004); Monumentos (2016); Teoria do Crescimento – Letra à Letra (2017). Colaboração literária (poesia e ficção) dispersa por revistas e antologias.