Amor na veia

LOURENÇA LOU


amor na veia

 

há dias em que é preciso se amar

com o fogo de raio riscando o céu

e deitar-se na própria presença

como rio manso sobre leito de pedras

 

há dias em que é preciso degustar

sem pressa o próprio sangue das veias

como se nele estivesse a explicação

para o jogo de facas da vida

 

nestes dias é preciso insultar a realidade

fingir-se broto na aridez da solidão

replantar-se ainda que memória do amor.


sob céus de nimbus

às vezes meu tempo fecha
perco-me em sensibilidades

tudo me atinge
tudo me fere
tudo me cala

nua
entrego-me às precipitações
enquanto me agarro
à promessa
que eu mesma me faço:

no dia em que a palavra
apagar os relâmpagos
costurarei os pulsos

outra vez serei salvação.


in picture

 

sobre a mesa

o cotidiano amarrota os dias

 

silêncio lá fora

é mãos em concha no ouvido

 

ecos de saudosismo

desafinam os pensamentos

 

na parede

cadeados celebram a falta de portas.


sexo-relógio

 

quando nasci

um anjo instalou em mim

um milhão de bombas

em prontidão

 

metade delas

destinou-se

a incitar meu paladar

em efeito cascata

 

a outra metade

é só explosão.


ecos do silêncio

 

gemidos de guitarra flamenca

morrem no ar

sementes regadas a rum

germinam na carne

 

do lado de cá do espelho

a bela adormecida

embebeda-se de sonho

e dedilha alucinadamente

o fio da navalha.


das lembranças

 

porque foram muitas
as manhãs
que nossos desejos
acenderam juntos
e foram tantos os dias
que encompridamos
na tentativa de eternizar-nos

porque foram intensos
os nossos abraços
na esperança
de nos amalgamarmos
e foi infinita a fome
que ao tom de beijos e blues
engoliu nossos corpos

 

porque tudo isso fomos nós
hoje somos
das lembranças
nossas melhores melodias.


ser, apesar de

 

sou alguém que carrega
com algum prazer e quase nada de culpa
os embornais de minhas escolhas

 

sou alguém que gargalha
e às vezes soluça
as verdades e as dores que inventa

 

guardo
escritos no andar
os caminhos
por onde me achei
e nos bolsos
o arrependimento
por aquilo que nunca farei

 

sou alguém que aprendeu
a valsar leveza
mesmo quando os pés moldam concreto.


desajustes metalinguísticos

 

sou poeta

de arritmias colhidas

em jardim de asfalto

antes fértil

em vidas povoadas

hoje irrigada

com sangue e segredos

dos corações de estátuas

– exaustões

 

talvez um dia

de tanto me descrever

em poemas inócuos

e desajustados

imaginados

em murmurantes salas de espera

vire um verso de pé quebrado

pichado

do lado de dentro de um muro qualquer

– eternidade.


há dias que demoram a nascer

 

andei por aí me sentindo invisível

sem vontades

sem coragem

apenas um coração de difícil solução

 

tropecei nas pessoas

elas não sentiram nem viram

o vai-e-vem das minhas pernas

agarrei-me nas horas

elas correram como sempre correm

das minhas tentativas de pará-las

 

andei tanto e no entanto

nada saiu do lugar

 

era  só eu cansada e cansada

dos sonhos que cobriam a cama

e aquele corpo

que a sombra na parede

dizia ser meu.


olhares

me olhava sem ver
eu também já não o via
e quando nos percebíamos
éramos susto

talvez não nos doesse
esse não ver do tempo
a enxurrada de silêncios
que nossos corpos engoliam
a falta de contrapontos
que nossos dias não teciam

talvez nem tivéssemos dor
apenas um campo de incertezas
esfacelado
sem girassóis
e um renovado espanto
a cada vez que nossos olhares
acendiam estrelas
um fora do outro.


Lourença Lou (Brasil). É mineira, das terras vermelhas de Drummond. Formada em Letras, publicou dois livros de poesia, participou de inúmeras coletâneas de poesia e de contos, revistas literárias, sites de crônicas e suplementos literários de jornais. Escreve porque esta é sua forma de dar vida aos seus silêncios.