ANDREW MARVELL E O PERCURSO ALQUÍMICO
MARIA SALOMÉ MACHADO

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Marvell desenvolve o seu poema segundo parâmetros muito simples: enumera e descreve os locais específicos dos domínios do Duque de Fairfax onde, na sua óptica, se desenrolam subtis processos alquímicos que, imediatamente explicita em pormenor através de uma linguagem hermética própria.

O primeiro lugar que o poeta considera digno de referência é a mansão, ou melhor, a casa que o seu proprietário mandou construir de acordo com os ditames daquilo que Marvell designa, à semelhança de outros, por exemplo Ripley, por «matemática sagrada», o que pressupõe o respeito pelas leis da proporção harmónica, entre o homem e a natureza e, consequentemente, o cosmos e representada pela figura enigmática do quadrado e do círculo cuja origem remete para Vitruvio. Deste modo, a estrutura do edifício corresponde à estatura moral, parcimónia e humildade que, segundo Marvell, constituem traços de carácter do Duque de Fairfax.

Porém, o quadrado e o círculo também equivalem a uma imagem emblemática alquímica da máxima importância, uma vez que simbolizam o próprio «opus alchymicum», o sucesso do trabalho, a pedra filosofal, a Quinta-essência, ou céu. Assim, o quadrado representa o que é mutável, o mundo «sensível», as quatro estações, os quatro elementos, os quatro pontos cardeais, os quatro braços do eixo da terra. Por contraste, o círculo ou esfera simboliza a infinita perfeição do reino espiritual, e, consequentemente, Deus. No «opus alchymicum» o quadrado prefigurava as quatro componentes que se transformariam na pureza da Quinta-essência ou Quinto elemento, a pedra angular redonda que, através de sucessivas purificações cada vez mais apuradas, conseguia que todas as substâncias imperfeitas alcançassem a perfeição.

Para Marvell, o Duque de Fairfax possui a sageza do alquimista que realizou o seu trabalho e se revê nele, ou seja, representa o homem «esférico» dentro da casa «quadrada», num paralelismo com o espírito «circular» que habita um corpo físico efémero e «quadrado». Concretiza-se, assim, no Duque e na sua mansão a quadratura do círculo.

Marvell encontrou muitos outros significados de raíz alquímica para a casa do Duque de Fairfax. Um dos mais interessantes e óbvios é aquele que a conota com o vaso alquímico, ou «vas», muitas vezes designado como «vas rotundum» ou vaso redondo, no qual os materiais se transmutavam. O vaso forma uma unidade indivisa com aquilo que contém e, contudo, não deixa, por isso, de se manter intacto a si próprio e ao seu conteúdo. Deste modo, objectivo e percurso são uma e a mesma coisa. Por isso, representa-se habitualmente o «arcanum» transformador, «a aqua permanens», ou a serpente mercurial pela imagem do «uroboros» — o dragão ou ofídio que se devora a si próprio e se dá à luz a si próprio. O «uroboros» é, paradoxalmente o seu próprio útero ou vaso de transformação, o seu próprio conteúdo e o seu próprio resultado.

Mas não é só na casa solarenga do Duque de Fairfax que Marvell projecta as suas visões alquímicas. Também os jardins delineados pelo bisavô do patrono do poeta e que, no contexto geral do poema, constituem uma nova fase alquímica e histórica, são alvo de tratamento semelhante. O poeta descreve o que se passa no exterior da casa no dealbar da madrugada. Talvez seja legítimo sugerir que do «nigredo» da noite surge o «albedo» do sol que nasce infundindo objectos e seres humanos com uma nova luz, e emprestando aos segundos uma perspicácia mais arguta, mais pura e mais lúcida que se consubstancia numa percepção diversa de si próprios e do cosmos. E porque Marvell sempre se assumiu como um «animal» político, este fenómeno também se refere não só à rotura com a ordem antiga imposta pelo catolicismo, como ao início de uma disciplina diversa, de raíz cristã, mas dissidente. Encontra-se, de igual modo, ligado ao desmembramento da monarquia e à instauração de um sistema político com parâmetros revolucionários que só se instituiu após uma série de violentas lutas intestinas.

No contexto alquímico, a guerra, neste caso a civil, desempenha o papel da «morte», o «solve» do ciclo «solve et coagula». É o estádio que precede a reconstrução purificadora. Para representar o conflito como um factor positivo, Marvell transforma-o em parte integrante do jardim sendo a natureza descrita em termos de metáfora militar. As flores, ordenadas em regimentos da mesma espécie, lançam tiros olorosos e as abelhas constituem-se em sentinelas de espadas afiadas. Parece, pois legítimo concluir que, num mundo de correspondências, guerra e natureza se equivalem.

Se a casa e o jardim se projectam em símbolos alquímicos, também o prado se reveste de ressonâncias paralelas. A ele Marvell atribui o significado de «prima materia» ou «abismo» ou ainda «águas primordiais», um mundo onde a ordem se inverteu e se adulterou. No processo alquímico o estado de «caos» acontece, de uma maneira geral, a meio do «opus» e, de facto, em Upon Appleton House o poeta descreve o prado e os fenómenos estranhos que nele se passam nas estrofes numericamente centrais do poema.

Contudo, o trabalho ainda não acabou. À dissolução provocada pelas águas segue-se o «coniunctio» que Marvell atribui ao bosque da propriedade. Com efeito, o matrimónio ou aliança dos donos de Appleton House — Thomas Fairfax e Anne Vere — é representada, de forma poética, pela união de duas árvores genealógicas ou «bosque». Em linguagem alquímica o «bosque duplo» consubstancia a dupla «árvore» alquímica em cujo tronco comum se unem em simbiose os princípios masculino e feminino. Este conceito emblemático simboliza a grande «coniuntio», o local onde se formam e maturam os frutos do «opus». Daqui surgirá o Quinto elemento.

Marvell descreve ainda o bosque como uma arca viva e em processo de perene criação. Flutua nas águas que extravasam do leito do rio numa referência clara ao episódio de Noé e do dilúvio universal que purificou os males da terra e gerou novas vidas.

Um outro símbolo alquímico muito importante que não se confina a uma só cultura ou tradição e que Marvell incluiu no bosque de Appleton House é o da árvore que nasce com as raízes viradas para o céu. Representa o homem que, embora partilhe da substância divina, se mantém indissoluvelmente ligado à terra. Pode, pois, ser considerado uma criatura anfíbia.

Mas, se Marvell enriqueceu o bosque com símbolos alquímicos, também o rio não está isento de metáforas similares. De facto, os alquimistas assemelhavam o processo de purificação ao renascimento através de um banho nas águas mercuriais regeneradoras. Uma vez que se considera que as raízes da arte alquímica ocidental se podiam encontrar em Alexandria, o Nilo tornou-se parte da terminologia dessa área semântica. E Marvell não se coíbe de chamar «pequeno Nilo» ao rio que atravessa os domínios de Fairfax.

Porém, a característica com mais interesse de Upon Appleton House parece residir no modo como o poeta refere a chegada da jovem e virginal Mary Fairfax ao jardim. O seu advento representa o vértice do poema. É a criança filosofal que surge após a fusão do sol com a sua própria sombra, a recompensa máxima dos que se dedicam ao «opus alchymicum».

Quando Mary entra no vergel, a natureza remete-se ao mais absoluto silêncio, aguardando a aliança emblemática do dia e da noite, do Sol e da Lua numa harmonia plena de opostos que produz uma síntese viva, o milagre do nascimento de uma criança que será a nova pedra angular.

Porém Mary não vem só. Acompanha-a uma ave místico-mítica, o alcião, porventura um dos símbolos alquímicos mais significativos, que voa na linha divisória entre o dia e a noite e se encontra profundamente ligado à criança. Assim como Mary nasceu das núpcias de Fairfax e Vere ocorridas no bosque, também a ave resultou da «generatio» simbolizada pelos pássaros que emergiam dos ovos nesse mesmo local.

Mary, consubstancia, assim, a sageza, representa a influência benéfica,benévola e pura que atravessa o mundo natural e renova todas as coisas, é o espelho sem mácula onde se reflecte o macrocosmos divino.

Com a chegada de Mary a que o poeta empresta toda esta carga simbólica de cunho positivo, Marvell considera que concluiu o seu poema. De facto, com a simbiose perfeita dos opostos completou-se o círculo.

 
Bibliografia

Abraham, Lyndy 1990: Marvell and Alchemy. Hants, Scolar Press.

Corns, Thomas N. ed. 1993: English Poetry: Donne to Marvell. The Cambridge Companion to English Poetry. Cambridge, Cambridge University Press.

Margoliouth H. M. ed. 1971: The Poems and Letters of Andrew Marvell. 2 vols.. Oxford, Clarendon Press.

III Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2000)

IN: MACHADO, Maria Salomé Machado, A.M. Amorim da Costa, A.M.C. Araújo de Brito & António de Macedo (2005) - A Palavra Perdida. Colecção Lápis de Carvão (dir. Maria Estela Guedes), nº1. Lisboa, Apenas Livros Editora.

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