ANDREW MARVELL E O PERCURSO ALQUÍMICO
MARIA SALOMÉ MACHADO

Dun. This castle hath a pleasant seat; the air
Nimbly and sweetly recommends itself
Unto our gentle senses.
Ban. This guest of summer,
The temple-haunting martlet, does approve
By his lov'd mansionry that the heaven's breath
Smells wooingly here: no jutty, frieze,
Buttress, nor coign of vantage, but this bird
Hath made his pendent bed and procreant cradle:
Where they most breed and haunt, I have observed
The air is delicate.

(William Shakespeare, Macbeth)

Embora, desde 1921, estudiosos e críticos literários se tenham debruçado com empenho sobre a obra de Andrew Marvell dissecando-a nas suas mais diversas vertentes, é, contudo, inegável que, só a partir das duas últimas décadas do século XX, se começa a analisar com convicção o riquíssimo substrato alquímico que perpassa todos os seus poemas. O interesse por essa faceta pouco explorada dos textos deste escritor coincide, como é lógico, por um lado com a descoberta de que o ocultismo constitui parte integrante do pensamento renascentista e, por outro, com a inferência decorrente de pesquisas complementares que, de um modo ou de outro, muitos dos homens que se distinguiram nas mais variadas áreas do saber durante os séculos XVI e XVII, praticavam a arte alquímica obtendo, dessa maneira, o que hoje se designaria por conhecimentos científicos básicos.

Parece, pois, legítimo concluir que, por um período de cerca de duzentos anos, as doutrinas herméticas onde a alquimia tinha o seu espaço próprio constituiram parte integrante do quotidiano dos ingleses cultos e menos cultos com base tanto na tradução elaborada por Marsílio Ficino da obra Corpus Hermeticum atribuida a Hermes Trismegisto, como através de versões inglesas dos textos de Paracelso.

Foi, também, no primeiro quartel do século XVII, que as gravuras emblemáticas atingiram o seu maior prestígio e popularidade. Entre os cultores mais entusiastas desta arte contavam-se os alquimistas que projectavam, de forma simbólica, nessas representações gráficas os diversos estádios do seu «opus alchymicum», talvez numa tentativa, aliás coroada de êxito, não só de propor o estudo contemplativo dessas imagens compósitas, como de estimular o desejo de proceder à sua descodificação.

Deste modo, a linguagem e simbologia hermético-alquímicas enformavam num grau muito profundo todas as vertentes da cultura do século XVII, sendo até usadas em textos de cariz religioso como veículo das doutrinas cristãs. E os cristãos dissidentes,vulgo protestantes, grupo em que Marvell se integrava, contavam-se entre os mais acérrimos defensores desta permuta simbiótica.

A vida de Andrew Marvell, homem viajado e culto, desenrola-se neste contexto e sob a égide de múltiplas influências concomitantes (1621-1678). Enquanto estudante em Cambridge de 1635 e 1640 teve, de certeza, livre acesso às obras em que o hermetismo lato sensu se fundamentava e, durante o lapso de tempo em que foi tutor de Mary Fairfax, o pai da sua pupila, o Duque de Fairfax, ocupava-se da tradução sob o título inglês Commentary dum texto redigido por Foix, Bispo de Aire, famoso alquimista, matemático e filósofo. Isto significa, na prática, que Marvell deve ter contribuido, pelo menos com o seu conselho avisado, para o sucesso deste trabalho.

No período em que o poeta teve a seu cargo a educação de Mary, provavelmente entre Junho de 1650 e Fevereiro de 1653, a família Fairfax residia nas suas imensas propriedades de Nun Appleton no Yorkshire. Terá sido aí que Marvell compôs um dos seus exercícios de escrita mais famosos Upon Appleton House, to my Lord Fairfax, um poema que não se confina a uma única convenção ou fórmula. Embora parta de um género muito em voga na época, onde perpassam ecos pastoris e que promovia o encómio das mansões solarengas erigidas num cenário campestre, Marvell não se limita a explorar os lugares comuns consagrados e tradicionais. Em vez disso, o poeta permite-se expandir os horizontes do seu próprio pensamento para que a sua mente, uma vez liberta das prisões que a constrangiam, se ocupe de uma gama vasta de assuntos e matérias: a opulência úbere dos jardins, os pormenores arquitectónicos da casa, os brasões e as árvores genealógicas, a natureza e o cosmos, as reminiscências do passado e as perspectivas para o futuro, o compromisso com a «res publica» e a demanda revolucionária como um sinal de mudança e transformação, por contraste com as vantagens da renúncia às falaciosas glórias do mundo e a escolha de uma atitude contemplativa, as controvérsias filosóficas tanto sob o ponto de vista subjectivo como objectivo, atardando-se, por fim, na transcendência enigmática dos mistérios do foro mitológico, religioso e alquímico.

Marvell gere e transmite esta riqueza temática segundo uma técnica muito específica que consiste numa mudança rápida sempre constante de cenários, perspectivas, ângulos, quadros prismáticos e jogos de espelhos que, na falta de conclusões decisivas, possibilitam uma certa ambiguidade. Deste modo, Upon Appleton House desafia a indiferença dos leitores obrigando-os a reagir e a empreender as mais diversas obordagens todas elas válidas e com interesse e, sobretudo, susceptíveis de gerar novos comentários.

A análise de matriz alquímica encontra o seu fundamento mais seguro na evidência interna do texto. De facto, uma leitura atenta do poema revela, sem margem para dúvidas, que a sua estrutura se desenvolve em paralelo e segundo os cânones do «opus alchymicum». Além disso, transparecem neste registo poético os princípios básicos que norteiam o pensamento do alquimista, assim como a mitologia que remete para a linguagem e símbolos da esfera alquímica. Por outro lado, um exame cuidadoso do modo como Marvell utiliza este material no poema explica imagens e conceitos até aqui considerados enigmáticos mas que apontam para uma ordem coerente e lógica, características que análises anteriores efectuadas sob uma óptica diversa se revelaram incapazes de detectar.

Embora Marvell mantenha em Upon Appleton House a sequência convencional dos complexos estádios do trabalho alquímico, não se coíbe, por vezes, de introduzir imagens inovadoras, idiossincrasia aceite e considerada na época como originalidade que, partilha, contudo, com muitos outros seus contemporâneos que se dedicam à mesma arte.

 

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III Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2000)

IN: MACHADO, Maria Salomé Machado, A.M. Amorim da Costa, A.M.C. Araújo de Brito & António de Macedo (2005) - A Palavra Perdida. Colecção Lápis de Carvão (dir. Maria Estela Guedes), nº1. Lisboa, Apenas Livros Editora.

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