Os recém-casados instalam-se num edifício vetusto e sombrio, misto de castelo e mosteiro, tendo como quarto de dormir um aposento em forma de pentágono, situado no topo de uma torre. Poe não especifica o formato desta estrutura, mas todas as evidências apontam para que fosse redonda, uma espécie de fornalha de laboratório de alquimista onde assentava a alcova, qual vaso alquímico. Porém, também se poderia perspectivar este conjunto como um dos símbolos maiores da arte alquímica — o pentagrama dentro do círculo.

Mas, o quarto tem outras características que acentuam, ainda mais, o seu carácter hermético. De facto, uma das paredes dessa divisão consiste num único vidro cor de chumbo o que sugere a «prima materia». Por outro lado, um turíbulo de ouro, preso por grossas correntes do mesmo metal, liberta línguas de fogo multicolores o que remete, uma vez mais, para a «cauda pavonis». Porém, estas labaredas ainda se revestem duma outra faceta importante: estão imbuídas da sinuosidade da serpente que ora avança, ora se retrai, ora se enrola sobre si mesma mordendo a cauda, prefigurando, muito provavelmente, o uroboros, o ofídio alquímico.

À semelhança de Ligeia, também Rowena adoece e, ao ser-lhe oferecida uma taça de vinho, talvez como remédio, caem dentro do líquido,como por magia e misturam-se com ele três ou quatro gotas de um fluído rubro e brilhante que, no percurso alquímico, responde pelo nome de «elixir vitae» ou «Aurum Potabile» e que não só devolve a saúde aos enfermos, mas também ressuscita os mortos. Contudo, Rowena tem de morrer, pois o seu destino é transmutar-se em Ligeia através do casamento régio do Sol e da Lua no vaso hermético que é o quarto dos recém-casados.

A ressurreição alquímica de Rowena/Ligeia acontece na quarta noite, depois do seu exício, preservando Poe, deste modo, a quaternidade dos elementos em alquimia: terra, água, fogo e ar. A nova Ligeia , renascida do «solve et coagula» funde-se e confunde-se, deste modo, com a pedra filosofal.

Seria imperdoável proceder a uma abordagem dos contos com subtexto alquímico de Edgar Allen Poe, sem referir, mesmo de forma sumária, «The Fall of House of Usher», escrito em 1838 e, talvez, o seu registo mais conhecido. Nele, o autor glosa, uma vez mais, o tema da morte e ressurreição com base nos pressupostos da arte alquímica. Madeline Usher é encerrada à pressa em estado de catalepsia num ataúde, imagem alegórica que os alquimistas muitas vezes usavam para significar o conteúdo do alambique em fase de «nigredo», por ordem de seu irmão Roderick com quem vivia no castelo de Usher. Após uma luta violenta, Madeline consegue libertar-se e aparece no aposento onde se encontram as outras duas personagens — Roderick e um amigo que, muito ao jeito de Poe também é o narrador. Faixas brancas cobrem-na da cabeça aos pés («albedo»), embora se encontrem manchadas pelo sangue («rubedo») dos ferimentos contraídos pelo esforço indómito que fizera. Num acto que a um não iniciado no trabalho alquímico pode parecer pura vingança, Madeline envolve Roderick num abraço mortal. Contudo, trata-se, apenas da união alquímica entre o Rei Sol e a Rainha Lua que, pelos cânones da alquimia onde o conceito de incesto, como é definido pelas leis dos homens, está ausente beneficiavam de uma «consanguinidade» muito próxima. (Recorde-se que no «Cântico dos Cânticos» quando o amado se refere à amada diz: minha irmã, minha amiga.»). Quanto ao castelo que, no fim se desfaz em pó, atingido por um raio (o fogo), projecta-se como a conjunção dos corpos físicos dos irmãos que é preciso que deixe de existir para que os espíritos se unam.

Muito haveria ainda para conjecturar sobre as ressonâncias alquímicas nos textos de Edgar Allen Poe que constituem um manancial inexaurível. Porém, este trabalho não possui essa envergadura. Consiste, apenas, numa abordagem crítica diferente que cumprirá o seu objectivo se conseguir estimular a curiosidade e o interesse de alguém pela obra deste escritor norte-americano.

Nota
Uma vez que Fernando Pessoa traduziu para português o poema «The Raven» do qual se extraiu a estrofe em epígrafe a este trabalho, transfere-se aqui o texto que o Poeta visualizou como correspondente na sua língua materna:
Numa meia noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia,
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
«Uma visita», eu me disse, «Está batendo a meus umbrais».
..............................................................«É só isto e nada mais.»
 
Bibliografia

Abraham, Lyndy 2000: A Dictionary of Alchemical Imagery. Cambridge, Cambridge University Press.

Clack, Randall A. 2000: The Marriage of Heaven and Earth: Alchemical Regeneration in the Works of Taylor, Poe, Hawthorne, and Fuller. Westport, Connecticut * London: Greenwood Press.

Hayes, Kevin J. 2002: The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe. Cambridge: Cambridge University Press.

Roob, Alexander 1997: O Museu Hermético: Alquimia & Misticismo. Trad. Teresa Curvelo. Koeln, Lisboa, London, New York, Paris, Tokyo, Taschen.

Sova, Dawn B. 2001: Edgar Allan Poe: A to Z: The Essential Reference to His Life and Work. New York, Facts on File, Inc.

IV Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2002)
APOIOS
DOMINICANOS DE LISBOA