ELEMENTOS ALQUÍMICOS (1)
Raquel Gonçalves

Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências,

Universidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa


Ao pintor do Imaginal,
Mestre LIMA DE FREITAS

Resumo:

Apresenta-se o «Selo de Salomão», o que permite nomear os quatro Elementos Alquímicos fundamentais e as quatro qualidades fundamentais da matéria. O «Selo de Salomão» permite, ainda, exprimir correspondências entre os Elementos e as qualidades, os metais, os planetas, os humores e assim por diante. O selo salomónico funde os princípios masculino e feminino, o Enxofre e o Mercúrio e simboliza, então, o «matrimónio alquímico» ou a feitura da Obra. A tríade alma, espírito e corpo completa-se com a junção do Sal. 

Como interrogar a Alquimia através da Química? Como pré-história da ciência e/ou como «pecado original». Um projecto de investigação prático de transmutação de matéria vil em ouro, com a sua correspondente herança material, no primeiro caso; uma manifestação que animou a ciência, onde nem falta a árvore, nem a maça, nem a serpente.

Refere-se Gaston Bachelard e a sua análise do imaginário, enraizada nos Elementos: o reino do onírismo é inaugurado e assegurado pela alquimia das metamorfoses.

Refere-se Lima de Freitas, o mestre pintor do Imaginal, através da sua obra e do seu múltiplo significado.          


1. O «Selo de Salomão»

O «Selo de Salomão», também conhecido por escudo ou estrela de David, é uma estrela de seis pontas, formada por dois triângulos equiláteros, um perfeitamente invertido em relação ao outro, que contém, entre vários atributos, os quatro Elementos Alquímicos: o Fogo no vértice superior (D), a Água no vértice inferior (Ñ), o Ar na reentrância à esquerda, entre os dois triângulos e, por fim, a Terra na correspondente reentrância à direita - Figura 1 (a).

 

 

Fig. 1. O Selo de Salomão

  O hexagrama que é o «Selo de Salomão» reúne, na sua totalidade, além do conjunto dos Elementos do universo, as qualidades fundamentais da matéria. Estas, situam-se nas pontas laterais da estrela e correspondem-se, duas a duas, com os Elementos: quente e seco para o Fogo, frio e húmido, para a Água, quente e húmido para o Ar e frio e seco, para a Terra.

O «Selo de Salomão» pretende exprimir, na sua aparente simplicidade, a complexidade cósmica. Assim, dentro da tradição hermética, o «Selo de Salomão» apresenta uma “personalidade” múltipla - Figura 1 (b). Além da descrita, pode  reunir:

-  os sete metais básicos: o Chumbo, o Estanho, o Ferro, a Prata, o Cobre e o Mercúrio - nas pontas da estrela e rodando segundo os ponteiros do relógio - e, ao centro, o Ouro;

-   os sete “planetas” básicos: Saturno, Júpiter, Marte, Lua, Vénus e Mercúrio - seguindo o mesmo trilho de anteriormente - e, ao centro, o Sol;

ou, por extensão: as sete esferas celestes, os sete graus de perfeição, os sete dias da semana, as sete cores do arco-íris ou mesmo os misteriosos sete anões da Branca de Neve…

O mesmo símbolo estrelado pode significar, ainda: os quatro humores vitais: a Mucosidade, a Atrabílis (atrabile ou cólera negra), o Sangue vermelho e a Bílis (Bile), todos pressupostos componentes do sangue; os quatro temperamentos: Linfático, Sanguíneo, Nervoso e Bilioso; os quatro estados da matéria: Líquido, Gasoso, Ígneo e Sólido; as quatro etapas da vida: Infância, Juventude, Maturidade e Velhice; as quatro estações do ano; os quatro pontos cardeais; …

São, consequentemente, possíveis inúmeras correlações entre os Elementos e as qualidades, e os metais, os planetas, os humores, os temperamentos, os estados da matéria, as etapas da vida ou as estações do ano. Assim, por exemplo:

- Fogo - quente e seco - Prata - Lua - Sangue vermelho - Nervoso - Ígneo - Maturidade - Verão - Sul …

- Água - frio e húmido - Chumbo - Saturno - Mucosidade - Linfático - Líquido - Infância - Inverno - Norte … 

O «Selo de Salomão» reduz o múltiplo ao uno (reduzir no sentido de transformar, converter, resumir e nunca no de limitar ou minorar); transmuta o imperfeito em perfeito (a imperfeição, que se dispersa pela periferia, converge para perfeição, que é simbolizada pelo Ouro ou pelo Sol que se encontra no centro); funde os princípios masculino (o triângulo vermelho) e feminino (o triângulo azul); e encaminha a Grande Obra, quer no plano material, quer no plano espiritual.

O facto do selo salomónico fundir os princípios masculino (o triângulo do fogo) e feminino (o triângulo da água), significa que o Enxofre, quente, expansivo, dinâmico e fixador se liga ao Mercúrio, húmido, dúctil e adstringente. O mesmo símbolo representa, então, o “matrimónio” destas duas matérias, criadoras primárias de onde nasce o Ouro vivo.

Um “elemento” estático, neutral neste casamento alquímico ou feitura da Obra, o Sal, deverá juntar-se para perfazer a exigência da tríade alma, espírito e corpo.

2. O «Pecado Original»

Um químico contemporâneo, perante este universo, interroga-se:

1) Fogo, Terra, Água, Ar… Que elementos alquímicos são estes que nem compostos químicos são?

2) Prata, Cobre, Mercúrio, Chumbo, Estanho, Ferro, Ouro… Que metais alquímicos são estes que não são elementos alquímicos, mas que são elementos químicos?

3) Mercúrio, Enxofre, Sal… Que mercúrio é este que se associa a Mercúrio, planeta do sistema solar, umas vezes; outras, associa-se a Enxofre, que é elemento químico e não metal, e a Sal, nome genérico de tantos compostos?   

Um químico nos dias de hoje interroga-se mais: É a Alquimia a pré-história da Química ou o seu «pecado original»?

Se a Alquimia for entendida como pré-história da Química podemos vislumbrar naquela um verdadeiro projecto de investigação, cujo objectivo prático consistiria em produzir ouro a partir de matérias não-nobres. É difícil encontrar diferenças fundamentais entre este projecto e, por exemplo, o projecto que conduziu à produção de diamantes a partir da grafite, à escala industrial, empreendido por uma equipa liderada por Tracy Hall, nos laboratórios novaiorquinos da General Electric Company. Em 1957 iniciou-se a sua comercialização e, daí para cá, já foram produzidos mais diamantes artificiais do que até então tinham sido extraídos diamantes naturais.

Ainda como pré-história da Química é de referir a inestimável herança “material” da Alquimia: vasos, retortas, cadinhos, fornos (o famoso athanor alquímico), técnicas e métodos de análise e de purificação de compostos, como sejam, a destilação, a sublimação e a cristalização, e a formação e enumeração das propriedades de metais e de ligas metálicas.

E a Alquimia como «pecado original» da Química?

Que se saiba, o pecado original de Adão e Eva não teria existido sem uma árvore, uma maça e uma serpente. Analisemos parcialmente os seus conteúdos simbólicos: a macieira é a árvore da Vida ou a árvore da Ciência, para o bem ou para o mal; a maça, integrando um pentagrama, uma estrela de cinco pontas, desenhado pelas suas próprias sementes, é o fruto do conhecimento, da liberdade, da descoberta e da revelação; e a serpente, por seu turno, fria, sem patas, sem pêlos e sem pernas, opõe-se de tal modo ao homem numa escala evolutiva (genética) que nada mais é do que uma “coisa primordial”. Não representará ela, então, um potencial vivificante?

Os Caldeus utilizavam a mesma palavra para vida e serpente e, em árabe, serpente é el-hayyah, vida é el-hayat e um dos nomes divinos é El-Hay, “o que dá a vida”.

O Uroboro, a serpente alquímica que morde a sua própria cauda numa autofecundação permanente, representa o ciclo perpétuo de vida e morte e, superiormente, a transformação da morte em vida.

 

Diz a tradição que este símbolo, um arquétipo universal e ancestral segundo Carl Jung, o famoso dissidente da congregação freudiana, foi sonhado pelo químico Kekulé quando investigava a estrutura da molécula do benzeno, sugerindo-lhe a estrutura fechada, em anel de ligações simples e duplas.




Fig. 2. Uroboro benzénico

Que mais dizer? Seja, pois, a Alquimia o «pecado original» da Química, na sua mais valia de manifestação que a animou. 

Na sua experiência prática, material, laboratorial, a Alquimia aproxima-se da Química; na sua vertente espiritual, mística, afasta-se muito do conhecimento científico tal como o concebemos no período contemporâneo.

Ler a Alquimia e os seus Elementos exclusivamente através da Química seria um pecado muito pouco original.


 

 

 




 

Fig. 3. Ulisses, por Lima de Freitas

 

 Na Figura 3, apresenta-se o painel Ulisses, da autoria de Lima de Freitas, o painel maior que decora o túnel de ligação da estação ferroviária do Rossio à estação de metro dos Restauradores, em Lisboa. Ulisses, o fundador mítico de Lisboa, encontra Lusitânia, a deusa da terra das serpentes. Lusitânia ostenta uma serpente sobre a cabeça, outra num dos pulsos e uma terceira encontra-se enroscada na árvore dos pomos, a árvore do Paraíso ou do Jardim das Hespérides.

Não é difícil estabelecer um paralelismo entre as figuras de Ulisses e Lusitânia e as de Adão e Eva. Um suposto Paraíso também aqui se encontra: na beleza paisagística, no homem e na mulher, na árvore, nas maças e nas serpentes.

A fonte de inspiração do artista para este painel foi a Farsa Auto da Lusitânia de Gil Vicente. Nela se pode ler: E como este Portugal [caçador e cavaleiro grego], todo fundado em amores, visse a fermosura sobrenatural da Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela.