O ESPELHO
objecto reflector do sujeito da reflexão
Pedro de Andrade

ABSTRACT

 

If the mirror idea implies, first of all, the vision of something that reflects in it, this paper proposes an exposition on the nature of the mirror, that is, a reflection about the reflection. This hermeneutics of reflexivity will be based on a cognitive figuration, e.g., a visual conceptualization : in other words, the mirror concept is represented here by a triangle, that reflects on himself and it is duplicated in an inverse way to the first, producing the shape of a hour-glass, or a double inverted triangle, in the horizontal. The dynamic time of the hour-glass contaminates, in this way, the space seemingly static of the specular surface, transfering to the mirror a volumetric interdimensionality.

 

And, if the classic hour-glass, placed in the vertical, means the time that flows and happens in a certain space, the horizontal hour-glass can transfer the sense of the space that we temporarily cross, especially the polyvalent (synchronous and diachronic) locus of our own existence. Indeed, the meanings given to and by the mirror appear to be so diverse as reality is, or as unreality shows, as it will be verified later.

 

The conceptual metaphor suggested, the hour-glass disposed in the horizontal, organizes, in first place,  the form of the symbolic net of the mirror : that is, four vertexes in its ends, two for each side of a fifth central vertex, this last one coming as resultant and mediator of the previous ones, and representing the own essence of the mirror in its totality. 

 

In second place, as for the content of the symbols of the mirror, those four polar vertexes sustain, substantively, two dichotomies. The first opposition presents rationality in contrast with sensibility. Rationality is expressed by  these concepts: ‘reflection’, ‘mediation’, ‘appearance’ and ‘passivity’. Sensibility is exteriorized by the terms ‘beauty’, ‘vision’, ‘forecast‘ and ‘prophecy’. The second tension indicates the clash between identity and otherness. In this dialectics,  identity is nominated by ‘self-knowledge’, ‘perfection’, ‘sameness’, and the ‘phase of the mirror’. Finally, alterity appears in the following ideas: ‘inversion of reality’,  ‘relativity’ and ‘communication among alterities’. 

 

And if in the mirror and in its symbols underly, simultaneously, the analogical, formal and dialectic logics, then is necessary to construct an inter-logic of symbologies. 

 

All this is transmited by  the game of mirrors with which the mirror plays with us. 

                       

1. 0 espelho, pretexto para a construção 

de uma Inter-lógica das Simbologias

Se a ideia de espelho implica, antes de mais, a visão de qualquer coisa que nele se reflecte, então irei propôr-vos uma exposição sobre a sua natureza, isto é, uma espécie de reflexão sobre a reflexão. Esta hermenêutica da reflexividade será baseada numa figuração visual, ou melhor, numa conceptualização visual: dito de outro modo, o conceito de espelho é aqui representado por um triangulo conceptual que se reflecte sobre si mesmo e se duplica de forma inversa ao primeiro, produzindo uma espécie de ampulheta, ou duplo triangulo invertido, na horizontal. O tempo dinâmico da ampulheta contamina, assim, o espaço aparentemente estático da superfíce bidimensional especular, emprestando ao espelho uma interdimensionalidade volumétrica.

E, se a ampulheta clássica, colocada na vertical, significa o tempo que escorre e que ocorre num determinado espaço, a ampulheta na horizontal poderá transmitir o sentido do espaço que se percorre temporalmente, em especial o lugar polivalente da nossa própria existência. Assim sendo, a existência readquire o sentido de locus simultaneamente diacrónico e sincrónico. Com efeito, os significados conferidos ao espelho têm-se mostrado tão abrangentes quanto a própria realidade, ou mesmo quanto a irrealidade, como se constatará adiante.

Para ordenarmos as nossas ideias, regressemos à metáfora conceptual sugerida acima, especificando-a:

Em primeiro lugar, de um ponto de vista da forma da rede simbólica do espelho, a ampulheta projectada na horizontal possui quatro vértices nos seus extremos, dois para cada lado de um quinto vértice central, este último apresentando-se como resultante e mediador dos anteriores, e representando a própria essência do espelho na sua totalidade.

Em segundo lugar, perspectivando o conteúdo do símbolo do espelho, aqueles quatro vértices polares sustentam, substantivamente, duas dicotomias: (a) de uma parte, a dicotomia que mostra a racionalidade em contraste com a sensibilidade; (b) e, de outra parte, a oposição entre as ideias de identidade e de alteridade. Tudo isto é-nos dito pelo jogo de espelhos com que o espelho joga conosco.

Como veremos, qualquer processo ou trabalho de simbolização, que amiúde transforma determinadas entidades quotidianas em objectos de culto, assenta em dois passos fundamentais. A primeira etapa é a descrição de uma coisa ou ideia nas suas propriedades concretas e materiais, como os atributos reflectores do espelho. A segunda fase consta na interpretação de derterminadas acções, às quais se fazem corresponder propriedades semelhantes ao objecto inicial, mas agora constituíndo traços de carácter abstracto e imaterial. Por exemplo, o pensamento entende-se como uma espécie de espelho do real, na medida em que, tendo como objectivo compreender a realidade, a duplica abstractamente no cérebro, embora essa imagem reflectida não passe de uma cópia incompleta daquilo que tenta explicar ou figurar, tal como no caso do espelho concreto. O pensamento desvela-se, assim, enquanto duplo, quase uma ovelha Dolly da realidade, ou uma clonagem usurpadora do mundo.

Note-se que este procedimento é essencialmente analógico, ou seja, confere a mesma natureza a objectos ou ideias inicialmente diferentes, através de uma qualquer semelhança detectada, quanto às suas características, mesmo se este procedimento se efectua, por vezes, de um modo algo arbitrário.

Para além desta lógica analógica, que vive de semelhanças, tentaremos definir o trabalho dos símbolos no interior das duas outras grandes lógicas existentes: a lógica formal ou cartesiana, filiada parcialmente no pensamento de Aristóteles, que opera por dicotomias mutuamente exclusivas, e a lógica dialéctica, que utiliza oposições também irredutíveis numa primeira fase, mas logo a seguir consensualizadas numa síntese que combina as valências positivas e negativas dos termos opostos anteriores.

Assim fazendo, poderemos construir uma Simbologia das Lógicas, que defina as virtualidades simbólicas das lógicas precedentes, ou uma Interlógica das Simbologias, que articule os vários tipos de lógica no estudo dos símbolos, tanto nas suas potencialidades quanto nas suasinsuficiências. Aliás, este pensamento que tem como um dos pilares o consenso das lógicas e o consenso das simbologias, assenta que nem uma luva à acção democrática, essencialmente dialogante, propondo uma sócio-simbologia democrática, que poderá ligar a reflexão sobre os símbolos, de um lado,  à prática da cidadania, de outro. 

 2. Especulações práticas sobre o speculu, ou espelho

Após estes prolegómenos e hipóteses de cariz mais epistemológico e teórico, vamos tentar demonstrar, de um modo mais analítico e empírico, a sua oportunidade e veracidade em casos particulares e exemplos que a História e a Sociologia dos símbolos, entre outros modos de estudo, nos oferece. No entanto, esta consideração das particularidades do tema submeter-se-á à sua síntese num todo inteligível, e não disperso. Mal estaríamos se, ao tratar um tema como o espelho, não déssemos a prioridade ou mesmo o protagonismo à reflexão, se bem que advogando uma reflexão sensível e plena de respeito pela alteridade.

Quanto ao primeiro conceito distinguido atrás, a racionalidade, ela é expressa, antes de mais, por uma das teses mesmo agora apontadas, ou seja, a consideração do espelho enquanto local de reflexão do real. Este atributo  dos espaços especulares permite perceber a analogia da própria construção da razão especulativa, que nunca é definitiva, mas apenas rebate uma parte da luz da verdade, intrínseca à realidade que envolve o sujeito pensante. Quando muito, o pensamento racional apresenta uma cópia imperfeita desse mesmo real, tal como o espelho o faz.

Esta ideia de incompletude, de plágio, que subjaz ao trabalho da razão, como também à acção das superfícies espelhadas, deriva precisamente de uma das propriedades da reflexão, em termos da actividade concreta do espelho ou da acção abstracta do pensamento, que é a mediação: a autenticidade do mundo ou a sua interpretação pela razão manifestam-se de modo indirecto, em termos não-imediatos, mas através da intermediação do pensamento, assim como o espelho intercala a realidade e a sua imagem.

Por sua vez, as precedentes noções de reflexão, e o seu carácter indirecto ou mediado, ligam-se a uma outra, o conceito de aparência. Dito de outro modo, o mundo do espelho é mesmo real, ou funciona como uma espécie de poeta fingidor, mimando Fernando Pessoa? Talvez a especulação do espelho, assim como a da razão, constituam as primeiras realidades virtuais historicamente assinaláveis, antes mesmo do ciberespaço, e prolongando-se nele. Não será o ciberespaço um imenso jogo de espelhos, e uma incomensurável rede de reflexões? Nesta perspectiva, será que a autenticidade do espelho consiste na clonagem daquilo que espelha, ou a reflexão, por si só,  produz a sua própria veracidade, a sua dicção da verdade, ou veridição?

Com efeito, um quarto conceito detectável no interior da dimensão da racionalidade do espelho é a passividade. Tudo aquilo que copia, que imita uma luz anterior, apenas possui um brilho herdado, e não genuíno. A sua acção é uma forma de reacção. O sábio, é, por isso, frequentemente, um mero iluminado, e não uma fonte primeira de claridade e de clareza. O espelho simbolizou, por isso, no universo simbólico de muitas civilizações, a Lua que recebe a luz do Sol, ou, no seio do Cristianismo, a Virgem que retoma a luz de Deus. Por outro lado, no Japão, o espelho encontra-se associado à pureza e à sacralidade. De um modo geral, se o espelho é um simbolo solar ou masculino, quando reflecte uma luz e a actualiza, torna-se um símbolo de feminilidade quando exala este carácter passivo. Na China, a contemplação que o espelho induz também não é activa.

Deste modo, o segundo grande pólo de significação simbólica do espelho, para além da racionalidade, é a sensibilidade. Com efeito, uma propriedade concreta do espelho é o fornecimento de uma imagem, captada por um dos órgãos dos sentidos, a visão.

À imagem está associada idealmente o conceito de beleza. O mito, e o símbolo de Narciso, da mitologia grega, demonstra a positividade, mas também a perigosidade, dessa característica, especialmente se associada ao espelho. O espelho permite a auto-reflexão, ora das ideias ora do corpo do sujeito. Se o corpo ou as ideias possuem uma beleza intrínseca, essa vantagem pode transformar-se no seu inverso, a vaidade ou a luxúria. Narciso constitui o paradigma do homem que se deixa aprisionar pela sua própria imagem, bela mas também assassina, ou mesmo suicidária. O espelho enquanto símbolo da vaidade e da volúpia surge igualmente em pinturas da Idade Média e da Renascença..

Uma outra ideia conectada à imagem do real reflectida no espelho, é o conhecimento do futuro, a previsão ou a profecia. A visão no espelho predispõe à pré-visão do real a ele inerente. A única realidade perceptível, principalmente quanto ao pré-real, é aquilo que se deixa ver no espelho, e em particular, no chamado espelho luminoso, pela cabalística. Segundo o Budismo, os espelhos mágicos permitem ver a forma da nossa vida depois da morte. Uma tradição chinesa assegura que,  se não reconhecermos a nossa própria cara num destes espelhos, a nossa morte está próxima. Se um homem encontra um espelho, é sinal também achará rapidamente uma boa esposa. Por outro lado, se alguém recebe um espelho de presente, o seu filho terá provavelmente uma profissão segura. Também na China, quando dois casados se deixam por muito tempo, partem um espelho em dois pedaços, para mais tarde se reconhecerem e reunirem. Se um deles fôr infiel, a sua parte do espelho transformar-se-á numa pêga, o que não deixa de apresentar algumas semelhanças com o termo de calão Português correspondente.

O terceiro pólo do sistema simbólico do espelho é o da identidade, que deriva parcialmente do primeiro pólo, o da racionalidade. Com efeito, através do pensamento chega-se ao auto-conhecimento, etapa importante da construção da subjectividade. O espelho indica assim a necessidade de meditar no sentido da perfeição, através precisamente da reflexão e duplicação até ao infinito da própria imagem da pessoa que se contempla nele, numa eterna aprendizagem. Trata-se da confrontação inacabada do Eu com o seu duplo. A reflexão surge assim, simultaneamente enquanto fim e como meio para alcançar esse desiderato.

Outra etapa fundamental nesta construção do Eu é a denominada Fase do Espelho, circunscrita por Jacques Lacan, neste caso mais conotada com a sensibilidade e o inconsciente. Este psicanalista Francês retoma os ensinamentos de Freud, especialmente o processo de identificações sucessivas (aos genitores, etc.) que, no seu conjunto, constituem a condição necessária ao aperfeiçoamento da identidade de um indivíduo. A criança, no dizer de Lacan, vê-se a si própria como indivíduo completo, destacado dos seus pais, quando se confronta com a sua imagem no espelho, Afinal, não será o rosto o espelho da alma?

Também se revela possível aproximar Narciso ao culto da identidade, ao Mesmo que se realiza em si próprio, em detrimento da comunicação ou compreensão dos outros. O espelho fornece, assim, quase empiricamente, a imagem concreta da própria mesmidade.

E chegamos, em contraponto a esta via da mesmidade, ao quarto e último pólo da rede de sentidos simbólicos do espelho, a alteridade. Trata-se certamente da área simbólica mais complexa e, talvez por isso mesmo, a mais fascinante, na medida em que a ela se encontram relacionadas muitas ideias interessantes, tantas quantas as variantes da diferença identitária.

Por exemplo, a reflexão provoca um mundo às avessas, isto é, uma inversão do real, significado de conotação essencialmente negativa. Encontramo-nos diante do outro lado, dos outros mundos, aos quais se ligam todas as inquietudes em diversos mitos. Por exemplo, a morte no caso do apelidado ‘espelho escuro’, ou a não-reflexão no espelho dos seres demoníacos, como os vampiros.

No entanto, a consideração da alteridade conduz-nos a um outro conceito simbólico fundamental, desta feita pleno de positividade. O facto de sermos diferentes dos outros mostra a relatividade da nossa condição individual, e a necessária relação ou comunicação com eles. Em particular, esta comunicação entre alteridades pode minorar a alienação circulante nas nossas sociedades pós-modernas ou de modernidade avançada.

Alguns autores falam mesmo do ‘Espelho do Cosmos, para se referir à comunicação cósmica entre as energias planetárias e até inter-planetárias, mediadas precisamente por esse tipo de espelho. Ou mencionam os chamados ‘espelhos interiores’, que transmitem a realidade profunda do ser humano a níveis externos de consciência. Ou os denominados ‘espelhos maiores’, que canalizam o Logos da Terra para a diversidade da vida planetária.

Subscrevendo ou não estas posições, o que parece certo é que o espelho apresenta-se enquanto símbolo um tanto peculiar, pelo menos na realidade social. Na verdade, sociologicamente, o símbolo define-se em dois planos: por um lado, revela-se como uma das objectivações mais apartadas das situações de interação entre dois ou mais actores sociais em co-presença, mais do que um índice ou um sinal, por exemplo; por outro lado, o símbolo permite a passagem de um mundo de significados a outro.

Assim sendo, o espelho constitui o paradigma do local de passagem para outros mundos da vida ou, por outras palavras, mostra-se como o símbolo dos símbolos ou ainda, se nos é permitido dizê-lo, o símbolo mais simbólico de todos. Isto passa-se nomeadamente por três razões:

(a) em primeiro lugar, devido à incompletude e à infinidade do espaço do espelho,  podem espelhar-se nele todos os mundos de símbolos existentes, sejam eles reais ou fictícios;

(b) em segundo lugar, o espelho constitui um outro mundo, exemplar simbolicamente, pela sua acessibilidade física e concreta, que é possível a qualquer momento, o que não acontece, por exemplo, no mundo da morte.

(c) Em terceiro lugar, pelo maior poder de interpretação que o espaço especular permite. Diferentemente de outros universos simbólicos, como o sonho, onde os significados nunca deixam se ser ambíguos, o espelho apresenta-nos sentidos relativamente claros, embora, como vimos, no-los mostre à sombra de uma luz indirecta. Esta clareza relativa deriva, em grande parte, do facto de que as conotações circulantes na superfície especular apresentarem-se filtradas, a cada momento, pela finitude do écran que o espelho delimita. Tal como num quadro do Renascimento ou numa cena de computador, a moldura dirige o olho, obrigando-o a concentrar-se numa perspectiva única. No entanto, existe uma diferença entre a moldura do quadro e a moldura do espelho. A primeira moldura institui a pessoa que vê como o único sujeito, e coloca-o no centro do mundo. Na moldura do espelho, pelo contrário, a pessoa que observa e o objecto 'espelho' aquirem, ambos, uma certa subjectividade. Ou seja, o mundo descentra-se na pluralidade de reflexões do sujeito que o espelho cria e publicita.

Em suma, e a jeito de conclusão, se o espelho nos faz simultaneamente pensar, sentir, identificarmo-nos com nós próprios e comunicar com os outros, ele recebe, por certo, um papel central em qualquer Inter-Simbologia, já que se trata, como se constatou, de um símbolo especial, que representa outros, ou seja, um meta-símbolo.