ALQUIMIA ONLINE
José Augusto Mourão
Abstract
At the end of the nineteenth century and at the beginning of the twentieth, before 1914-1918, one spoke of "vagabond religiosity" to designate an nebulous alternative outside of the churches, individualist and spiritualist, modern in its own way, or more less pantheistic. Nostalgia for the sacred survives and reappears in the midst of jurassic transformations that mark society. That which had been considered extinct repositions itself in simultaneous configurations never before seen. The desenchantment of the world did not close the cycle of the "quest" for the divine. But the reenchantment of the world is not equivalent to the rebirth of old or new idolatries. Alchemy, as discourse as well as practice, by the empiricism to which it gives birth, by the magic which it calls upon, by the secrecy which it establishes, by the diffuse divinity at its disposal, by the cult of a living Nature, will apparently be more sheltered from dematerialisation than the religions, for example. Its entrance in cyberspace proves that after all "all that is solid is dissolved in the air", and this field is subject to the same waste. Is it possible to foresee behind the misery of the sacred that proliferates in cyberspace a new field of enchantment: the cybersacred?
Peut-on se passer de dieu pour accéder à l'objet au-delà du politique?
Never a separate domain of experience, religion pervades all culture. From global financial networks to the casinos of Las Vegas, from computer terminals to steel sculpture, contemporary culture displays an unexpected religious dimension. Mark Taylor
Proliferação de transcendências
Hottois fala mesmo de tecno-evolução. Ora, a "opção em favor da tecno-evolução...coloca-se sob o não-signo e o não-sentido da transcendência negra"[2]. Cabe aqui referir a proliferação de transcendências capitaneadas por ciber-gnósticos e ciber-místicos de todos os bordos, que combinam a magia, a psionics e a conversão cibernética em função da iluminação a atingir.
No real ou no virtual, a vida é antes de mais a alma. A indústria cinematográfica já não se contenta com a animação assistida por computador, procura dar uma espécie de sopro a esses "seres" feitos de pixels e de algoritmos, recriar "criaturas virtuais", capazes de aprender e de evoluir. Os clones, cada vez mais realistas, circulam nas redes com uma delegação de poder fascinante. Monika Liston e Hugo Jo casaram-se realmente no ciberespaço, pronunciando o "sim" através dos seus clones respectivos. É o prenúncio de comunidades virtuais de clones, baseadas na vizinhança virtual, metafórica, simulatória. O adultério é adultério, mesmo que seja virtual, de acordo com a Famiglia Cristiana. A Argila virtual é um material audiovisual que se modifica e transforma os dados apreendidos numa representação abstracta da significação destes dados. É sintomático que a crença fundamental dos ciber-gnósticos seja que o mundo da matéria, a carne ou a entropia sejam o demónio e que seja a pura informação o verdadeiro objectivo da realidade. A virtualização do ciberespaço, i.é., a deslocalização e a desmaterialização do espaço social da comunicação leva fatalmente à desencarnação nas relações sociais. A imaterialidade da comunicação coloca-nos os problemas da desmaterialização e da dessubstantialização que John Perry Barlow muito argutamente enuncia:
"Os vossos conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento, e contexto não se nos aplicam. Baseiam-se na matéria. Aqui não há matéria." (John Perry Barlow, A Declaration of the Independence of Cyberspace, Davos, 1996)".
Que acontece ao sagrado na catástrofe das definições e dos fundamentos? Será a quest tecnológica uma "quest" espiritual, como pensam M. Bauwens e Ken Wilber? Anuncia o ciberespaço uma nova religio? Representa a cibercultura uma verdadeira "ruptura instauradora" (Michel de Certeau) da Igreja do Espírito face à Igreja de Cristo, a ordo clericorum de que fala Joaquim de Fiore? Não falta quem tenha feito a ligação da franco-maçonaria à corrente joaquimita[3]. De resto, é sabido que S.João tem um lugar de destaque na Fraco-maçonaria. As assembleias maçónicas tinham o nome de "lojas de S. João". Joaquim de Fiore (1135-1202) que Honório III (bula de 1220) considerava ter sido um católico que aderiu à fé santa e ortodoxa, anuncia nos seus escritos a idade do Espírito, o tempo em que triunfará a "inteligência espiritual". Se o primeiro tempo começou com Adão, atinge o seu apogeu a partir de Abraão e chegou ao seu termo com Cristo, o segundo começa com Ozias (século VII a J. C.) "frutificou" a partir de João Baptista e de Jesus e aproxima-se do seu fim. O terceiro foi inaugurado por S. Bento, "frutificará" com o regresso de Elias e terminará com o juízo final. Na hora presente estamos entre o segundo e o terceiro estado[4]. Ou então entre a sexta aetas (inaugurada por João Baptista e realizada por Jesus) e a septima aetas, que será a hora do Sábado e do repouso[5]. Um novo Pentecostes que abrirá para o mundo a idade da plenitude da inteligência (Concordia, V, cap. 84. fº 112a-b). Um grande lugar é dado a João Baptista como o anunciador de Cristo e a Elias, cujo regresso à terra, de acordo com a apocalíptica judaica, deve preceder o acontecimento do Messias. A herança joaquimita encontrou em Arnaldo de Vilanova (1238/40-1311), um teólogo leigo, médico de Bonifácio VIII, alquimista e cabalista, um desenvolvimento insuspeitado. O seu livro principal Tratactus de tempore adventus Antichristi (1292) foi condenado três anos mais tarde pela universidade de Paris. Uma proliferação de pequenos grupos entre o começo do século XIII e que se prolonga pelo século XIV indicia uma herança joaquimita não extinta. O movimento dos Apostolici (1260) que tem à cabeça G. Segurelli, recusa a hierarquia. A heresia do "Livre Espírito" (XIII) será denunciada pelo inquisidor Bernard Gui sob o título de "beguinos". Este movimento continua, transmutado, no Pentecostalismo, hoje.
Seria interessante seguir a génese do Pentecostalismo (em que há fundamentalistas, carismáticos ou Pentecostais e neo-evangélicos) que se define a si próprio como crença na posse do humano pelo Espírito de Deus, um fogo não racional, não moderno que produz na alma um número de efeitos que vão da capacidade de falar em línguas a outras manifestações não menos espectaculares. Alan Purves lembra que havia nos anos 20 uma canção "Hello Central, Give Me Heaven", que permitia a comunicação directa com o divino[6]. Os Pentecostais são o grupo mais próximo da movência hipertextual e com a nova visão de literacia. A ideia é que o indivíduo recebe o Espírito Santo directamente, a visão do carismático coincide com a visão do leitor como autor e co-autor. O texto não é algo fora de mim, sim, está antes de tudo, em mim. A Palavra, embora divina, é apenas aquilo que eu sei e vejo; é filtrada através da minha consciência.
O ciberespaço, que em si mesmo, indica um espaço para além do espaço, propicia a aparição de híbridos nunca vistos ou sequer sonhados. Depois dos jogos interactivos, as ficções hipertextuais estão povoadas de monstros e de homens-máquina, "criaturas" nossas, à imagem nossa, marcadas pela aura da simulação e de uma "glória" efémera. Anunciam estas criaturas a emergência de um cibersagrado?" A placa mais baixa e mais enterrada, no sentido da geologia, a que mexe pouco mas em ritmos multiseculares transporta o mágico, o sagrado, fundamentais, primitivos", escreve Michel Serres[7]. A tentação do infinito está omnipresente ao tempo e ao espaço do humano. Na literatura, na filosofia, na ciência, na alquimia. A Pedra Filosofal, o lápis, o templo designam um território marcado, sagrado, de procura do sentido como o irredutível de uma forma. A nossa identidade, os nossos direitos e deveres e até os problemas fundamentais dos Estados, mesmo a soberania, são afectados pela sociedade de informação em que entrámos. É isso que aborda a "infoética, neologismo introduzido pela UNESCO para encarar os valores que emergem e os seus efeitos sobre os valores estabelecidos. Como desenvolver uma nova ética? Como desenvolver uma nova criação artística? Como desenvolver novas relações entre os homens, as técnicas, as sociedades, as políticas e as culturas em vista da ciber-civilização que nos espera? Toda a sociedade comporta a sua parte de sagrado que, a maior parte das vezes implícito, constitui o seu fundamento. Depois da era da revolução industrial que quase a obliterou inteiramente, não será tempo de se interrogar se não será preciso um novo tipo de fundamento. Não está um cibersagrado a tomar forma diante dos nossos olhos[8]? Como o identificar? Como nele participar? Para lá das dimensões abertas pelas novas tecnologias, será possível um cibersagrado para desenhar o rosto do século a vir? Não estão os artistas, esses magos de sempre, a esboçar este rosto por meio de tecnologias novas, a partir do élan simbólico-técnico original?
A alquimia que caiu na rede
Um longo caminho se fez para se chegar a uma concepção do saber como "arquipélago" (e não ilha) baseado na operação de partilha como dispositivo de criação e de circulação de conhecimento. Vários regimes de conhecimento (tácito, explícito, disciplinar) que incluem o técnico, o político, o religioso, o esotérico e o artístico são agora reconhecidos, sem guerra de paradigmas, sem pretensões hegemónicas. Sem fusão, sem reducionismo[10]. A linguagem representa hoje o denominador comunitário e o consensus em que o homem actual se encontra. Talvez se possa mesmo caracterizar o estilo filosófico actual como um consensualismo naturalista pela razão que consiste em se ter considerado a linguagem objectivo natural da investigação filosófica, mas sobretudo por as diversas escolas terem considerado a essência da linguagem humana como um convénio (consensus: consentimento: thesei) natural (physei) do homem, onde o homem fica por sua vez dialectizado entre a natureza (necessidade) e cultura (liberdade) e, como tal, definido como animal (+) simbolicum.
A alquimia é uma prática e um discurso. Pratica-se e textualiza-se. Há uma persistência de traços e de figuras que a tornam reconhecível dentro de uma tradição. Este discurso é bem um representante dos discursos híbridos porque mistura em si o registo utópico, cosmológico, místico, gnóstico, oratorial, laboratorial. Donde a dupla necessidade do controlo dos enunciados, colocado pela veridicção, e da existência de um discurso crítico que faça a análise genética dos textos abordados. Qual o estatuto de veridicção deste discurso? Trata-se de um discurso cognitivo, fantástico, fabuloso, científico? O discurso alquímico, como qualquer outro discurso, há-de respeitar a ética da leitura. É preciso renunciar às interpretações que a obra não pode admiitir. Durante séculos, o pensamento hermético provou que o não-respeito dos princípios elementares do racionalismo (e do bom senso) apenas pode ocasionar perturbações e desordens prejudiciais tanto para o indivíduo como para a comunidade. Se submetemos as obras a todas as interpretações possíveis e imagináveis, teremos tudo e nada. Pior ainda se a maior parte dos preconceitos são o fruto de abordagens interpretativas fundadas na suspeita, na sobreavaliação dos índices mais fracos, quando não simplesmente inventados. O discurso alquímico, as mnemotécnicas vertiginosas em que tudo remete para tudo, permitem-nos compreender como determinados deste método se afundaram na confusão mental. Os alquimistas que andam na rede (Dharmanet, Rubellus Petrinus) propõem portais de Artigos e Sites em que "Ciência e Religião" caminham e convivem lado a lado, harmoniosamente. Pouco interesse haverá em transpor o discurso alquímico para o meio digital. Os discursos canibalizam-se, parasitam-se e, hoje mais do que nunca, nós somos todos ladrões de palavras. A alquimia na Rede está sujeita à mesma deriva interpretativa que a religião ou a ciência. Pela sua posição na fronteira dos saberes, a alquimia presta-se a toda a espécie de manipulação e de aplicações: da cibervitaminas, à "cyberhealth", da "cyberwitch" à geometria sagrada, da cibergnose à cibermística, da memética à patafísica. Os novos alquimistas no ciberespaço não propõem, partindo de um horizonte comum - de conhecimento - outra matéria de salvação, outra saúde, outra mudança.
Imanência - transcendência
Desde o início do século que a teologia flutua entre a enfatização da divina transcendência e da imanência divina. Karl Barth reafirma a transcendência divina e Thomas Altizer tenta restabelecer a imanência divina na afirmação dos últimos valores da "terra". Que é que eles não pensaram? Onde levou a alternativa transcendência vs imanência? Há um terceiro termo não dialéctico que reside entre a dialéctica do ou/ou e e/e? Pode este terceiro não ser nem um nem outro? A resposta a esta questão é o modo de escrita que nos mantém abertos a uma diferença que não podemos controlar e a um outro que não podemos dominar. Facilmente se reconhece nesta posição a tese de Bonhoeffer segundo o qual o existir para outros de Cristo converte o mais próximo, isto é, converte o próximo na mais consumada experiência do trancendente[11]. É uma escrita dos limites, uma parapraxis que resiste à clausura e ao niilismo das religiões fundamentalistas que recusam o mundo, e a uma religião anti-fundamentalismo, que o santifica. "Nem o 'nay-saying' da religião fundamentalista, nem o 'yea-saying' do humanismo religioso favorece um espaço em que a sagrado pode ser vislumbrado, uma afirmação da outridade e da diferença sem 'fim'". Para Taylor, the divine is never revealed directly but is always embedded in and implied by material cultural practices where it appears in and through a process of withdrawal. We cannot, therefore, examine religion directly but can only thein about religion in an effort to trace what can never be truly comprehended. Ken Wilber é um dos filósofos americanos que mais tenazmente tem procurado fazer uma nova síntese do conhecimento científico e do conhecimento espiritual. Desde Up from Eden, No Boundary , Grace and Grit ou A Brief History of Everything que este autor, mais conhecido no campo da psicologia transpessoal, vem estabelecendo os perfis básicos de uma "ciência" do espiritual e contrariando o reducionismo da ciência contemporânea, responsável pela má divisão entre o imanente e o transcendente. Uma hipótese básica de "Up from Eden" é a distinção de duas linhas de desenvolvimento em termos de crescimento de consciência. Wilber distingue o nível de alcançar o que ele chama a elite espiritual, que evolui desde o chamanismo e a sua maestria no domínio da consciência a Buda, com a sua descoberta dos estados subtis e não duais. Para Wilner como para Marx, de resto, a base tecno-social da sociedade é a chave que determina o "estado médio da consciência". Ontem, a revolução Gutemberg, hoje, as tecnologias da comunicação são as chaves determinantes desta base tecno-social. Neste contexto, a Internet, como rede mundial de comunicações, como tecnologia chave que estende os nossos sentidos para abarcar acontecimentos dispersos torna obviamente um novo nível de consciência para lá da identificação com a nação ou o Estado.
As empresas estatais privatizam-se, des-hierarquizam-se os modelos das organizações financeiras, esfuma-se o controle das correntes financeiras. Tudo o que era sólido se dissolve no ar, como previra Marx. É preciso saber que as mudanças no mundo material objectivo, com base tecno-científica da sociedade não levam automaticamente à mudança e ao crescimento humano. O que se recusa é uma espécie de ciber-utopia ingénua que prometa um mundo paradisíaco em que mentes sem corpo e todas iguais, morando no ciberespaço, criem um mundo de paz e de fraternidade. Uma vez mais, "science sans conscience est dérive de l'âme". A socio-génese é um espelho da psico-génese. Poucas pessoas estão preparadas para se moverem em estados puros transracionais, como os estados mediúnicos (por exemplo os chamanes), causais (os santos), subtis (profetas) e não-duais (mentes-Buda completamente realizadas), mas há um número considerável que se está a mover para um novo estado fronteiriço entre a razão e o estado transracional. Este visão chama-se visão-lógica (vision-logic) e é um passo em frente relativamente ao estado racional. A Internet pode ajudar a passar a uma nova fase de transcendência, como pode levar a novas formas de regressão.
Coda
As novas guerras de religião lutam hoje para controlar o céu através de um sistema digital e de uma visualização panóptica virtualmente imediata. Cultura digital, jet e TV são luagres sem as quais não há hoje nenhuma manifestação religiosa, nenhuma viagem ou alocução do Papa, nenhuma irradiação organizada dos cultos judaico ou muçulmano. Num ciberespaço digitalizado, prótese sobre prótese, um olhar celeste, monstruoso, bestial ou divino, algo como um olho de CNN vigia em permanência: sobre Jerusalém e os seus monoteísmos, sobre a multiplicidade, a velocidade e a amplitude sem precedente das deslocações dum papa entregue à retórica televisual (
) é imediatamente difundida, massivamente marketizada e disponível em CD-ROM[12].
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