ALQUIMIA ONLINE
José Augusto Mourão

Abstract  

At the end of the nineteenth century and at the beginning of the twentieth, before 1914-1918, one spoke of "vagabond religiosity" to designate an nebulous alternative outside of the churches, individualist and spiritualist, modern in its own way, or more less pantheistic. Nostalgia for the sacred survives and reappears in the midst of jurassic transformations that mark society. That which had been considered extinct repositions itself in simultaneous configurations never before seen. The desenchantment of the world did not close the cycle of the "quest" for the divine. But the reenchantment of the world is not equivalent to the rebirth of old or new idolatries. Alchemy, as discourse as well as practice, by the empiricism to which it gives birth, by the magic which it calls upon, by the secrecy which it establishes, by the diffuse divinity  at its disposal, by the cult of a living Nature, will apparently be more sheltered from dematerialisation than the religions, for example. Its entrance in cyberspace proves that after all "all that is solid is dissolved in the air", and this field is subject to the same waste. Is it possible to foresee behind the misery of the sacred that proliferates in cyberspace a new field of enchantment: the cybersacred?


  

Peut-on se passer de dieu pour accéder à l'objet au-delà du politique?

Michel Serres

 

...Et le dieu renaît dans le corps de l'homme

et l'homme renaît dans l'Esprit du dieu

et l'homme est le Christ et le Christ est l'Ame

qu'il faut traverser pour entrer en Dieu...

et l'Esprit qui est du Troisième Temps,

du temps transmuant, du Troisième Cycle

envahit la Terre, envahit les Eaux...

 

Jean-Claude Renard, Métamorphose du Monde, 2. Points et Contrepoints, 1963, pp. 83-9

 

Never a separate domain of experience, religion pervades all culture. From global financial networks to the casinos of Las Vegas, from computer terminals to steel sculpture, contemporary culture displays an unexpected religious dimension.  Mark Taylor


Proliferação de transcendências

A imagem da "Internet como mundo" empurra-nos para lá do mundo: para a hiperrealidade. A palavra "network" traduz exactamente a ideia de renda, de malha, de retículo, e a expressão "to fall into a net" designa exactamente "cair no laço". O fascínio pelo "depthless screen" - o "abismo superficial" toca-nos a todos como espaço de jogo, como êxtase da comunicação. Esta é a era do autómato e da repetição infinita. A "Web" anuncia, antes de mais, o fim do círculo, o espaço stereoreal (Virilio). Muitos vêm nesta nova droga a transparência do Mal; não poucos vêm a tecnociência como uma nova forma de totalitarismo, como uma nova forma de eugenismo (Virilio), o reino da indiferenciação, do Human Xerox, do pensamento único (Baudrillard). Certo é que estamos a passar do mundo das coisas lidas ao mundo das coisas vistas, do homo sapiens ao homo videns. A tirania do video-poder instalou-se entre nós como um destino[1]. Tornou-se evidente que o protagonista da evolução já não é o homem, sim a técnica. Jean Perret começa a sua carta manuscrita à IBM que o consultara para encontrar um equivalente francês de "computer" por esta frase: "Cher Monsieur, Que diriez-vous d'ordinateur? C'est un mot correctement formé, qui se trouve même dans le Littré comme adjectif désignant Dieu qui met de l'ordre dans le monde", carta datada de 16 de abril de 1955. O Time Magazine consagra em 1983 como "O homem do ano" um computador, com este título: "The Computer Moves In", especificando: "Um mundo emerge, resultando de uma reviravolta tecnológica que introduz o computador junto de quem quer que seja". "Como ninguém dominou este processo, o Time escolheu para "Homem do ano", não um homem, mas o Computador". O Computador goza hoje de um estatuto de meta-instrumento que, sem confundir o espírito e o cérebro, instaura a validade de um híbrido de um novo tipo.

Hottois fala mesmo de tecno-evolução. Ora, a "opção em favor da tecno-evolução...coloca-se sob o não-signo e o não-sentido da transcendência negra"[2]. Cabe aqui referir a proliferação de transcendências capitaneadas por ciber-gnósticos e ciber-místicos de todos os bordos, que combinam a magia, a “psionics” e a conversão cibernética em função da iluminação a atingir.

No real ou no virtual, a vida é antes de mais a alma. A indústria cinematográfica já não se contenta com a animação assistida por computador, procura dar uma espécie de sopro a esses "seres" feitos de pixels e de algoritmos, recriar "criaturas virtuais", capazes de aprender e de evoluir. Os clones, cada vez mais realistas, circulam nas redes com uma delegação de poder fascinante. Monika Liston e Hugo Jo casaram-se realmente no ciberespaço, pronunciando o "sim" através dos seus clones respectivos. É o prenúncio de comunidades virtuais de clones, baseadas na vizinhança virtual, metafórica, simulatória. O “adultério” é adultério, mesmo que seja virtual, de acordo com a “Famiglia Cristiana”. A Argila virtual é um material audiovisual que se modifica e transforma os dados apreendidos numa representação abstracta da significação destes dados. É sintomático que a crença fundamental dos ciber-gnósticos seja que o mundo da matéria, a carne ou a entropia sejam o demónio e que seja a pura informação o verdadeiro objectivo da realidade. A virtualização do ciberespaço, i.é., a deslocalização e a  desmaterialização do espaço social da comunicação leva fatalmente à desencarnação nas relações sociais. A imaterialidade da comunicação coloca-nos os problemas da desmaterialização e da dessubstantialização que John Perry Barlow muito argutamente enuncia:

"Os vossos conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento, e contexto não se nos aplicam. Baseiam-se na matéria. Aqui não há matéria." (John Perry Barlow, A Declaration of the Independence of Cyberspace, Davos, 1996)".

Se combinamos as sociedades de Minsky, que são sociedades de espíritos (1988) e a sociedade como texto de Brown (1986) obtemos um conceito de sociedades como hipertextos. O hipertexto baseia-se em duas categorias fundamentais, nomeadamente nós e elos. Os nós são estruturas atómicas de hipertextos que não estão comprometidos com um tipo particular de dados. Podemos pensar num nó hipertextual como um pedaço de texto, ou uma lexia, mas pode também esse nó como uma matriz de dados relacional, ou como uma peça de informação de um outro tipo qualquer: entidades visuais ou unidades acústicas. Esta distinção traz-nos um eco distante do "Tatsachen" und "Sachverhalte" de Wittgenstein e permite a criação de um número infinito de redes semânticas de um dado conjunto de dados. Não podemos esperar "intensities of human consciousness" de jogos de aventura porque essas construções são fundamental e paradoxalmente extensivas, fundamentalmente despedaçados, como os seus jogadores, entre um percurso e as suas alternativas, entre saga e interface, hierarquia e rede. Mas podemos detectar a emergência de uma sensibilidade fictícia mais harmonizada com as lacunas, as tensões, as fissuras com que o mundo inconsútil das linhas tradicionais sempre procurou controlar, "purificar". O ciberespaço radicaliza a racionalidade do espectáculo; nele, o indivíduo torna-se espectador de si mesmo, do seu poder e da sua liberdade. O ciberespaço "existe" no interior de um espaço virtual acentuadamente gráfico e configurável pelo sujeito. O sujeito pode, assim, organizar e ordenar o cosmos à medida do seu gosto pessoal. O nosso planeta não é já a terra mas o Windows (ou o Linux, ou ...). Os ambientes gráficos enquadram o ciberespaço numa ilusão de mundo configurável pelo indivíduo.

Catástrofe dos fundamentos

Que acontece ao sagrado na catástrofe das definições e dos fundamentos? Será a quest tecnológica uma "quest" espiritual, como pensam M. Bauwens e Ken Wilber? Anuncia o ciberespaço uma nova religio? Representa a cibercultura uma verdadeira "ruptura instauradora" (Michel de Certeau) da Igreja do Espírito face à Igreja de Cristo, a ordo clericorum de que fala Joaquim de Fiore? Não falta quem tenha feito a ligação da franco-maçonaria à corrente joaquimita[3]. De resto, é sabido que S.João tem um lugar de destaque na Fraco-maçonaria. As assembleias maçónicas tinham o nome de "lojas de S. João". Joaquim de Fiore (1135-1202) que Honório III (bula de 1220) considerava ter sido um católico que aderiu à fé santa e ortodoxa, anuncia nos seus escritos a idade do Espírito, o tempo em que triunfará a "inteligência espiritual". Se o primeiro tempo começou com Adão, atinge o seu apogeu a partir de Abraão e chegou ao seu termo com Cristo, o segundo começa com Ozias (século VII a J. C.) "frutificou" a partir de João Baptista e de Jesus e aproxima-se do seu fim. O terceiro foi inaugurado por S. Bento, "frutificará" com o regresso de Elias e terminará com o juízo final. Na hora presente estamos entre o segundo e o terceiro estado[4]. Ou então entre a sexta aetas (inaugurada por João Baptista e realizada por Jesus) e a septima aetas, que será a hora do Sábado e do repouso[5]. Um novo Pentecostes que abrirá para o mundo a idade da plenitude da inteligência (Concordia, V, cap. 84. fº 112a-b). Um grande lugar é dado a João Baptista como o anunciador de Cristo e a Elias, cujo regresso à terra, de acordo com a apocalíptica judaica, deve preceder o acontecimento do Messias. A herança joaquimita encontrou em Arnaldo de Vilanova (1238/40-1311), um teólogo leigo, médico de Bonifácio VIII, alquimista e cabalista, um desenvolvimento insuspeitado. O seu livro principal Tratactus de tempore adventus Antichristi (1292) foi condenado três anos mais tarde pela universidade de Paris. Uma proliferação de pequenos grupos entre o começo do século XIII e que se prolonga pelo século XIV indicia uma herança joaquimita não extinta. O movimento dos Apostolici (1260) que tem à cabeça G. Segurelli, recusa a hierarquia. A heresia do "Livre Espírito" (XIII) será denunciada pelo inquisidor Bernard Gui sob o título de "beguinos". Este movimento continua, transmutado, no Pentecostalismo, hoje.

Seria interessante seguir a génese do Pentecostalismo (em que há fundamentalistas, carismáticos ou Pentecostais e neo-evangélicos) que se define a si próprio como crença na posse do humano pelo Espírito de Deus, um fogo não racional, não moderno que produz na alma um número de efeitos que vão da capacidade de falar em línguas a outras manifestações não menos espectaculares. Alan Purves lembra que havia nos anos 20 uma canção "Hello Central, Give Me Heaven", que permitia a comunicação directa com o divino[6]. Os Pentecostais são o grupo mais próximo da movência hipertextual  e com a nova visão de literacia. A ideia é que o indivíduo recebe o Espírito Santo directamente, a visão do carismático coincide com a visão do leitor como autor e co-autor. O texto não é algo fora de mim, sim, está antes de tudo, em mim. A Palavra, embora divina, é apenas aquilo que eu sei e vejo; é filtrada através da minha consciência.

Cibersagrado

O ciberespaço, que em si mesmo, indica um espaço para além do espaço, propicia a aparição de híbridos nunca vistos ou sequer sonhados. Depois dos jogos interactivos, as ficções hipertextuais estão povoadas de monstros e de homens-máquina, "criaturas" nossas, à imagem nossa, marcadas pela aura da simulação e de uma "glória" efémera. Anunciam estas criaturas a emergência de um cibersagrado?" A placa mais baixa e mais enterrada, no sentido da geologia, a que mexe pouco mas em ritmos multiseculares transporta o mágico, o sagrado, fundamentais, primitivos", escreve Michel Serres[7]. A tentação do infinito está omnipresente ao tempo e ao espaço do humano. Na literatura, na filosofia, na ciência, na alquimia. A Pedra Filosofal, o lápis, o templo designam um território marcado, sagrado, de procura do sentido como o irredutível de uma forma. A nossa identidade, os nossos direitos e deveres e até os problemas fundamentais dos Estados, mesmo a soberania, são afectados pela sociedade de informação em que entrámos. É isso que aborda a "infoética, neologismo introduzido pela UNESCO para encarar os valores que emergem e os seus efeitos sobre os valores estabelecidos. Como desenvolver uma nova ética? Como desenvolver uma nova criação artística? Como desenvolver novas relações entre os homens, as técnicas, as sociedades, as políticas e as culturas em vista da ciber-civilização que nos espera? Toda a sociedade comporta a sua parte de sagrado que, a maior parte das vezes implícito, constitui o seu fundamento. Depois da era da revolução industrial que quase a obliterou inteiramente, não será tempo de se interrogar se não será preciso um novo tipo de fundamento. Não está um cibersagrado a tomar forma diante dos nossos olhos[8]? Como o identificar? Como nele participar? Para lá das dimensões abertas pelas novas tecnologias, será possível um cibersagrado para desenhar o rosto do século a vir? Não estão os artistas, esses magos de sempre, a esboçar este rosto por meio de tecnologias novas, a partir do élan simbólico-técnico original?

 "The research on cyberspace is a quest for God", afirma Paul Virilio. Levará a navegação no ciberespaço a uma verdadeira “quest” de Deus? Pode subscrever-se a tese de Michel Bauwens segundo o qual a “quest” da transcendência está de facto “aramada” na psique humana e que a ciência e a técnica se tornaram meios para alcançar a transcendência? "O sagrado é, especificamente, a presença da ausência (...), a manifestação sensível e tangível do que normalmente está fora dos sentidos e da captação humana. E a arte, no sentido em que nós modernos a compreendemos, é a continuação do sagrado por outros meios. Quando os deuses desertam do mundo, quando deixaram de aparecer e de significar a sua alteridade, é o próprio mundo que se nos afigura outro, revelando uma profundidade imaginária, objecto de uma "quest" especial, dotada de fim em si mesma, e remetendo apenas para si própria. Assim, a apreensão imaginária do real, que constituía o suporte antropológico da actividade religiosa, começa a funcionar por si própria, independentemente dos antigos conteúdos que a canalizavam"[9].  A religião no ciberespaço tornou-se produtora e distribuidora de novos ídolos. Veja-se a “listserv” de Mark Taylor, autor de Erring: a Postmodern A/theology, chamada "Techspirit" - em que as pessoas discutem as possibilidades espirituais abertas pela Net. Estranha intersecção de tecnofilia e espiritualidade! Vale a advertência de M. Taylor: "O ciberespaço não nos dá a cura para a nossa "schizo condition", pode antes exacerbá-la. O ambiente electrónico determina o desaparecimento do significado no jogo dos significantes. Em termos teológicos, esta reinscrição do significado em significantes pode ser entendida como a morte de Deus, que é determinada através de uma incarnação radical. A sombra de Nietzsche não larga o espaço de questionamento em que nos movemos. A Encarnação torna-se dificilmente pensável porque o corpo é virtual. Embora virtualidade não seja o contrário de realidade; pelo contrário, a chamada realidade é mais virtual e a chamada virtualidade é mais real do que a sua simples oposição implica.  

 

A alquimia que caiu na rede

Um longo caminho se fez para se chegar a uma concepção do saber como "arquipélago" (e não ilha) baseado na operação de partilha como dispositivo de criação e de circulação de conhecimento. Vários regimes de conhecimento (tácito, explícito, disciplinar) que incluem o técnico, o político, o religioso, o esotérico e o artístico são agora reconhecidos, sem guerra de paradigmas, sem pretensões hegemónicas. Sem fusão, sem reducionismo[10]. A linguagem representa hoje o denominador comunitário e o consensus em que o homem actual se encontra. Talvez se possa mesmo caracterizar o estilo filosófico actual como um consensualismo naturalista pela razão que consiste em se ter considerado a linguagem objectivo natural da investigação filosófica, mas sobretudo por as diversas escolas terem considerado a essência da linguagem humana como um convénio (consensus: consentimento: thesei) natural (physei) do homem, onde o homem fica por sua vez dialectizado entre a natureza (necessidade) e cultura (liberdade) e, como tal, definido como animal (+) simbolicum.

A alquimia é uma prática e um discurso. Pratica-se e textualiza-se. Há uma persistência de traços e de figuras que a tornam reconhecível dentro de uma tradição. Este discurso é bem um representante dos discursos híbridos porque mistura em si o registo utópico, cosmológico, místico, gnóstico, oratorial, laboratorial. Donde a dupla necessidade do controlo dos enunciados, colocado pela veridicção, e da existência de um discurso crítico que faça a análise genética dos textos abordados. Qual o estatuto de veridicção deste discurso? Trata-se de um discurso cognitivo, fantástico, fabuloso, científico? O discurso alquímico, como qualquer outro discurso, há-de respeitar a ética da leitura. É preciso renunciar às interpretações que a obra não pode admiitir. Durante séculos, o pensamento hermético provou que o não-respeito  dos princípios elementares do racionalismo (e do bom senso) apenas pode ocasionar perturbações e desordens prejudiciais tanto para o indivíduo como para a comunidade. Se submetemos as obras a todas as interpretações possíveis e imagináveis, teremos tudo e nada. Pior ainda se a maior parte dos preconceitos são o fruto de abordagens interpretativas fundadas na suspeita, na sobreavaliação dos índices mais fracos, quando não simplesmente inventados. O discurso alquímico, as mnemotécnicas vertiginosas em que tudo remete para tudo, permitem-nos compreender como determinados deste método se afundaram na confusão mental. Os alquimistas que andam na rede (Dharmanet, Rubellus Petrinus) propõem portais de Artigos e Sites em que "Ciência e Religião" caminham e convivem lado a lado, harmoniosamente. Pouco interesse haverá em transpor o discurso alquímico para o meio digital. Os discursos canibalizam-se, parasitam-se e, hoje mais do que nunca, nós somos todos ladrões de palavras. A alquimia na Rede está sujeita à mesma deriva interpretativa que a religião ou a ciência. Pela sua posição na fronteira dos saberes, a alquimia presta-se a toda a espécie de manipulação e de aplicações: da cibervitaminas, à "cyberhealth", da "cyberwitch" à geometria sagrada, da cibergnose à cibermística, da memética à patafísica. Os novos alquimistas no ciberespaço não propõem, partindo de um horizonte comum - de conhecimento - outra matéria de salvação, outra saúde, outra mudança.
 

Imanência - transcendência

Desde o início do século que a teologia flutua entre a enfatização da divina transcendência e da imanência divina. Karl Barth reafirma a transcendência divina e Thomas Altizer tenta restabelecer a imanência divina na afirmação dos últimos valores da "terra". Que é que eles não pensaram? Onde levou a alternativa transcendência vs imanência? Há um terceiro termo não dialéctico que reside entre a dialéctica do ou/ou e e/e? Pode este terceiro não ser nem um nem outro? A resposta a esta questão é o modo de escrita que nos mantém abertos a uma diferença que não podemos controlar e a um outro que não podemos dominar. Facilmente se reconhece nesta posição a tese de Bonhoeffer segundo o qual o “existir para outros” de Cristo converte “o mais próximo”, isto é, converte o próximo na mais consumada “experiência do trancendente”[11].  É uma escrita dos limites, uma parapraxis que resiste à clausura e ao niilismo das religiões fundamentalistas que recusam o mundo, e a uma religião anti-fundamentalismo, que o santifica. "Nem o 'nay-saying' da religião fundamentalista, nem o 'yea-saying' do humanismo religioso favorece um espaço em que a sagrado pode ser vislumbrado, uma afirmação da outridade e da diferença sem 'fim'". Para Taylor, “the divine is never revealed directly but is always embedded in and implied by material cultural practices where it appears in and through a process of withdrawal. We cannot, therefore, examine religion directly but can only thein about religion in an effort to trace what can never be truly comprehended”. Ken Wilber é um dos filósofos americanos que mais tenazmente tem procurado fazer uma nova síntese do conhecimento científico e do conhecimento espiritual. Desde Up from Eden, No Boundary , Grace and Grit ou A Brief History of Everything que este autor, mais conhecido no campo da psicologia transpessoal, vem estabelecendo os perfis básicos de uma "ciência" do espiritual e contrariando o reducionismo da ciência contemporânea, responsável pela má divisão entre o imanente e o transcendente. Uma hipótese básica de "Up from Eden" é a distinção de duas linhas de desenvolvimento em termos de crescimento de consciência. Wilber distingue o nível de alcançar o que ele chama a elite espiritual, que evolui desde o chamanismo e a sua maestria no domínio da consciência a Buda, com a sua descoberta dos estados subtis e não duais. Para Wilner como para Marx, de resto, a base tecno-social da sociedade é a chave que determina o "estado médio da consciência". Ontem, a revolução Gutemberg, hoje, as tecnologias da comunicação são as chaves determinantes desta base tecno-social. Neste contexto, a Internet, como rede mundial de comunicações, como tecnologia chave que estende os nossos sentidos para abarcar acontecimentos dispersos torna obviamente um novo nível de consciência para lá da identificação com a nação ou o Estado.

As empresas estatais privatizam-se, des-hierarquizam-se os modelos das organizações financeiras, esfuma-se o controle das correntes financeiras. Tudo o que era sólido se dissolve no ar, como previra Marx. É preciso saber que as mudanças no mundo material objectivo, com base tecno-científica da sociedade não levam automaticamente à mudança e ao crescimento humano. O que se recusa é uma espécie de ciber-utopia ingénua que prometa um mundo paradisíaco em que mentes sem corpo e todas iguais, morando no ciberespaço, criem um mundo de paz e de fraternidade. Uma vez mais, "science sans conscience est dérive de l'âme". A socio-génese é um espelho da psico-génese. Poucas pessoas estão preparadas para se moverem em estados puros transracionais, como os estados mediúnicos (por exemplo os chamanes), causais (os santos), subtis (profetas) e não-duais (mentes-Buda completamente realizadas), mas há um número considerável que se está a mover para um novo estado fronteiriço entre a razão e o estado transracional. Este visão chama-se visão-lógica (vision-logic) e é um passo em frente relativamente ao estado racional. A Internet pode ajudar a passar a uma nova fase de transcendência, como pode levar a novas formas de regressão.

 
Coda

As novas “guerras de religião” lutam  hoje para controlar o céu através de um sistema digital e de uma visualização panóptica virtualmente imediata. Cultura digital, jet e TV são luagres sem as quais não há hoje nenhuma manifestação religiosa, nenhuma viagem ou alocução do Papa, nenhuma irradiação organizada dos cultos judaico ou muçulmano. “Num ‘ciberespaço’ digitalizado, prótese sobre prótese,  um olhar celeste, monstruoso, bestial ou divino, algo como um olho de CNN vigia em permanência: sobre Jerusalém e os seus monoteísmos, sobre a multiplicidade, a velocidade e a amplitude sem precedente das deslocações dum papa entregue à retórica televisual (…) é imediatamente difundida, massivamente ‘marketizada’ e disponível em CD-ROM”[12].

Entramos em plena ciberantropologia da Desincarnação, na procura de uma realidade pós-humana através dos recursos da tecnociência. O media holostético (de holos (todo) e aisthesia (sentir ou perceber)[13] e, de modo específico, o ciberespaço, têm uma forma que se exprime em termos mitológicos. As tecnologias imersivas (VR) cabem nesta classe de media electroplásticos. O intento fundamental das RV é produzir no observador a percepção de um acontecimento como se ele ocorresse no mundo físico. A holostesia é o componente necessário de uma tal forma de percepção sintética. O ciberespaço pode criar, jungindo a tecnologia holostética da VR e a tecnologia da comunicação, uma experiência holestética partilhada. David Thomas diz que: "Este mito-lógico sugere que uma das funções mais fundamentais do 'ciberespaço' é servir como um meio para comunicar uma forma de 'gnose', conhecimento místico acerca da natureza de coisas e como elas chegam a ser o que são (...). No ciberespaço, as mediações entre humano e pós-humano, espaço analógico e espaço digital sugerem que o ciberespaço deve ser entendido não apenas em termos estreitamente socioeconómicos, ou em termos de uma cultura paralela convencional, mas também e sobretudo, como um operador metasocial inerentemente original e inventivo e uma divindade potencial cibernética criativa"[14]. Muito daquilo a que se chama ciber-espiritualidade é ou pode ser regressivo, como o transe provocado farmaceuiticamente pela techno music. Não falta quem acredite que a  Internet está a reiventar o símbolo no coração do ciberespaço em formação. O laço é talvez o seu motor. Mesmo se aparece frequentemente como uma prática puramente aleatória, ou semi-orientada em favor dos "search engines", ou explicitamente orientada, como no recurso a bancos de dados, o laço que se activa está prenhe de um poder de encontro acompanhado por um poder de maravilhoso. À la limite é plausível evocar a emergência de um cibersagrado. Com algumas interrogações. Era para aí que o pai da cibernética, Norbert Wiener, no seu profético God and Golem Inc, A Comment on Certain Points Where Cybernetics Impinges on Religion, publicado há quase quarenta anos. Pode a Internet abrir um espaço potencial para um novo sagrado? Slavoj Zizek diz que, em vez de abrir um novo universo, o ciberespaço produz o "insustentável fechamento do ser". "A perda da realidade" no ciberespaço não é, diz ele, provocada pelo carácter vazio, imaterial, deste último, mas, pelo contrário, pelo seu excessivo "enchimento"[15]. O infinitamente presente, a inteligibilidade total codificada pelo meio sem fim ou por agentes inteligentes que limitam e conduzem as nossas opções leva-nos, inevitavelmente, a sentir-nos num beco sem saída. Manda a sabedoria que em vez de demonizar, com um misto de asco e de fascínio, aquilo que mal conhecemos (as máquinas, o ciberespaço) melhor seria conhecê-lo.  

Uma vez mais, foi pela mão da analogia (esse demónio antigo) que fomos levados a aproximar a alquimia e o ciberespaço. Apesar dos perigos que essa operação acarreta: o perigo da "impermeabilização da fronteira" e o perigo da "difuminación de la frontera" (Muguerza). O primeiro é o perigo da incomunicação entre crentes e não crentes - os tópicos do "intrusismo" e do "secretismo" têm uma força que a terra não conhece: "A terra não guarda segredos"[16]. Ana Paula Guimarães apresenta o fim do segredo do conto "O Príncipe das Orelhas de Burro" de uma forma que se poderia aplicar tanto à crença como à magia. Que acontece ao segredo? "O segredo ("o príncipe tem orelhas de burro") confiado ao fundo do vale ecoará nas flautas dos pastores construídas com as canas do canavial onde nasceu. E é esse segredo revelado que faz com que o príncipe perca as orelhas de burro?" (Cf., Conclusão de Falas da terra, p. 38). O segredo da graça é que não há nenhum segredo, nenhum negócio com a libido videndi. O problema já não é o do limes em que se pensava a religião e que delimitava o "mundo" e o "para além" deste mundo que se "revelava" no mundo como "mistério". Movemo-nos hoje através de uma linha de desfronteirização em que o problema do sagrado, da velocidade e da globalização são plataformas de encontro para uma cultura que se pensa através da transformação acelerada de discursos e de práticas. Longe vai o tempo em que se acreditava que "Homo Est Clausura Mirabilium Dei" (Hildegarda de Bingen). Este enunciado dizia que o homem não é o centro do universo, mas o seu fim. Não perder o anel, essa é a injunção maior que depreendemos da prática sapiencial que é a alquimia. Podemos não acreditar na neomitologia que espera um "Deus que vem" e que viria reconciliar o Pão e o Vinho, Cristo e Dioniso. Um equívoco permanece: o trans-humanismo tecnológico não coincide com a transcendência post-teísta. Mas não é exactamente esse equívoco que nos permite concluir que estamos às portas de uma nova metafísica naturalista? 


Notas

[1] Giovani Sartori, La democracia después del comunismo, Alianza, Madrid, 1993, pp. 124-127.

[2] Hottois, "Humanisme et évolutionisme dans la philosophie de la technique", RIP, 161, 1987/2, p. 286.

[3] H. de Lubac, La postérité spirituelle de Joachim de Flore, 285.

[4] Joaquim de Fiore, Concordia IV, cap. 33, fº 56b.

[5] Cf. H. Mottu, La Manifestation de l'Esprit selon Joachim de Flore, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1977, p. 241.

[6] Alan C. Purves, Web of Text and the Web of God, New York, Guilford Press, 1998, p. 187.

[7] Michel Serres, Statues, François Bourin, 1987, p. 214.

[8] Ken Wilber, A Brief History of Everything, Shambhala, Boston & London, 1996.

[9] Marcel Gauchet, Le Désenchantement du monde, Paris, Gallimard, 1985, 297.

[10] João Caraça, Science et Communication, Que sais-je?, PUF, 1999, pp. 109-114.

[11] Vide Javier Muguerza, “Una visión del cristianismo desde la increencia”, in Cuadernos FyS, 2000, Sal Terrae, p. 26.

[12] Jacques Derrida, in La religion, Paris, Seuil, 1996, pp. 35-36.

[13] O termo foi criado por William Martens, Spacial Image Formation in Binocular Vision and Binaural Hearing, 3D Media Technology Conference, 1989.

[14] David Thomas, "Old Rituals for a New Space: Rites de Passage and W. Gibson's Cultural Model of Cyberspace", Cyberspace: The First Steps, Benedikt, ed. MIT Press, Cambridge, 1991, p. 41.

[15] Slavoj Zizek, The Plague of Fantasies, Verso, London N.Y., 1997, p. 150 e ss.

[16] Ana Paula Guimarães (com colaboração de Maria Emília Traça), "Secrets et petits secrets dans la tradition populaire portugaise" in Secret et topique romanesque du Moyen Âge au XVIII siécle, Lisboa, 1995.