A escadaria

ANTÍMIO DAMIÃO


A escadaria para o palácio é extensa e íngreme. Por ela terão passado reis e rainhas, fidalgos e aristocratas, altos dignitários, generais de cinco estrelas, militares condecorados, entres outros heróis de guerra e civis que a História não registou mas que, até à data, figuram no imaginário popular e esperam vir a ser exumados por um investigador paciente que ouse desafiar o saber dos manuais publicados.

A escadaria compõe-se de um sem número de degraus seculares que, nos dias que correm, como é evidente, apesar de resistirem às agruras do tempo, já não conservam o fulgor e a robustez de antanho. Exemplo disso são os degraus em basalto, xisto, pedra-pomes, ouro e esmeralda, que ninguém, até hoje, conseguiu explicar. Presume-se que tenham sido aí postos devido à falta de granito na pedreira usada à construção da escadaria. Diz-se também que terá sido o príncipe a encarregar o capataz-mor de prover os construtores com tais materiais por forma a não protelar as obras. Há quem discorde desta teoria e, em seu detrimento, defenda a pés juntos que o granito nunca escasseou, tendo o príncipe optado por esses degraus à revelia do orçamento estipulado. Outra versão ainda é atribuída ao soberano do reino vizinho, que, um dia, de visita ao palácio, terá aconselhado o príncipe a ornar a escadaria com pedras e metais preciosos. Não obstante a discussão, por mais hipóteses que surdam, o mistério mantém-se.

Ao longo do tempo, a paisagem em redor da escadaria foi sendo alterada, como de resto é disso prova o desaparecimento dos abetos que cobriam a colina do palácio. Por sua vez, estruturas majestosas e de lazer foram construídas visando o aproveitamento turístico da área. No entanto, algumas das obras estão ainda por terminar. Na opinião de muitos, não terá sido a lógica a criar o consenso do povo em relação a elas, mas sim a crença pueril de que o principado, uma vez acabadas as obras, prosperaria de imediato. Para eles, as obras espelhavam a glória dos antepassados e a prosperidade do principado, então território pobre e escravo da caridade dos reinos vizinhos. Nesse tempo, a população vivia pessimamente. Nas zonas pobres, o trabalho escasseava a olhos vistos, e famílias de seis pessoas dormiam no mesmo quarto e partilhavam um pão ao almoço, por vezes a única refeição do dia. As crianças esmolavam na rua; esfarrapadas, descalças, a cara suja de terra, baba e ranho. Não obstante a miséria, a população perseverou. O príncipe de então, a fim de contrariar a penúria, achou por bem construir a escadaria. À espampanante logística da obra somou-se a desconfiança do povo, desiludido com anos e anos de promessas falsas e pobreza galopante. Apesar do despotismo do príncipe, o plano foi aprovado, ainda que mal recebido por conselheiros, senadores e estadistas. O povo, esse, não teve outro remédio senão dar o braço a torcer. Posto isto, os cidadãos, esperançosos, surgiram de cara lavada e ânimo renovado, crentes de que a união popular faria toda a diferença. Deste modo, obreiros e voluntários amontoaram-se encosta acima, para o palácio; filas e filas de gente pobre e desterrada vinda de todos os quadrantes, sem lugar aonde cair morta; gente munida de alforges, esteiras de verga e muita tenacidade. Entre homens e rapazes, havia mulheres a quem atribuíram tarefas leves mas de igual brio, pois todos subiam a eito, a um só fito, lá em cima, no palácio. Os melhores técnicos e os mais informados aguardavam no topo da colina, ao contrário da multidão pobre e analfabeta, que, mais abaixo, desesperava por um posto de trabalho. Ora, a tensão não tardou a rebentar sob a forma de desacatos e escaramuças, tendo a Guarda do Principado sido chamada a intervir.

Passado um mês, as obras começaram. Décadas depois, a escadaria seria concluída para gáudio de todos, ainda que à custa do suor, do sangue e das lágrimas de muitos obreiros.

Hoje em dia, a penúria do povo persiste, embora a corte a mascare por intermédio de uma mui bem orquestrada propaganda. Em entrevista ao pasquim do principado, o príncipe negou tal miséria, preferindo antes debruçar-se sobre os seus gostos musicais e dotes culinários.

Por enquanto, o património tem atraído boa leva de turistas. Segundo fontes oficiais, parte do capital investido tem tido retorno, faltando amealhar metade da verba despendida. Já o príncipe tomou a liberdade de readaptar letras do cancioneiro popular que possam, eventualmente, comprometer a estabilidade geral. Por essa razão, conceitos como “guerrilha” e “protesto” pertencem a um passado que só os mais velhos recordam. Para estes, a apatia do presente é deveras preocupante. Pelo contrário, os mais moderados não negam nem aprovam este pessimismo. Em vez disso, defendem que a rebeldia é um ideal romântico em desuso. Os anciãos, por seu turno, afirmam que a inércia e o conforto são imposturas que o futuro denunciará. Seja como for, os poucos protestos têm passado ao lado da sociedade.

Em contrapartida, o príncipe tem agido de forma estranha nos últimos tempos. Passa dias a fio nas varandas do palácio, de olhos postos no céu e no horizonte. Será da agenda sobrecarregada ou do stress da governação? Ao que parece, procura algo que lhe falta. E, pelos vistos, encontra-o lá em baixo, nos rostos nobres dos populares. Assim sendo, ordena ao pajem que lhe traga o sabre e o uniforme. Enquanto o armam de colares e anéis, diz que vai viajar sozinho até à aldeia. Por conseguinte, manda selar o alazão mais possante e parte, cruzando, temerário, a ponte levadiça da primeira muralha do palácio. Por seu lado, os guardas correm a interpelá-lo, alarmados. O príncipe, ao vê-los, chicoteia veementemente o cavalo e foge para o último pórtico. Uma vez aí, diante das escadas, descobre que, a cavalo, não conseguirá chegar lá abaixo. Por tal motivo, apeia-se e resolve descer a pé a escadaria. O primeiro passo é seguro, decidido, no entanto, ao segundo, é traído pela borda gasta do degrau e escorrega, reequilibrando-se por milagre. Na atrapalhação, olha lá para o fundo e é acometido de uma intensa vertigem. Nesse entretanto, recorda os retratos dos seus antepassados, expostos no Salão da Memória do palácio. Por fim, apreensivo, senta-se no degrau, de olhos postos no céu, enquanto ao longe se ouvem os gritos inquietos dos guardas.