A diversão de Marco Luchesi

MARIA ESTELA GUEDES
Diretora do site Triplov.


Publicado originalmente em Estética do Labirinto – A poética de Marco Luchesi, São Paulo, Patuá, 2018, pág.: 99-115


Três livros de Marco Lucchesi para investigar, dois tão parecidos como irmãos e um terceiro, Hinos matemáticos, tão diverso como habitante de outro planeta: o Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão, etc. partilha com os Rudimentos da língua laputar a índole e a circunstância de não precisar de ser lido na íntegra. Listas, índices, dicionários, enciclopédias, gramáticas, a Bíblia, o Alcorão, os catálogos das espécies, das bibliotecas em geral e da do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão em particular, consultam-se, para aferir algum registo, apurar algum procedimento linguístico, rememorar algum elemento mais perdido na memória, mas não se lêem de fio a pavio como se fossem romances. Aliás, nenhum dos três livros necessita desse modo de apreensão, apropriado só para a narrativa, cujos lances exigem atenção a todas as frases e palavras, segundo a ordem em que o autor os registou, sob pena de perdermos o fio à meada.

Um aparte cumpre entretanto deixar quanto à narratividade. Não se tratando nem de romance, nem de novela, nem de conto, o total dos enunciados convoca a ideia de contar (a ideia de contar está sempre presente no terceiro livro, Hinos matemáticos, mas aqui é mais precisamente um contar digital), contar uma história, e iria até mais longe: uma história do si/self, ou autobiografia.

Se dermos atenção a que os livros incluem notas como a explicação de que a imagem do dragão é para reduzir às dimensões de um selo, e que por baixo deve vir o nome da editora, Balur, sem a palavra “editora”, se repararmos na licença para imprimir, no colégio que tão relevante poder detém, no colofão, e se nos dispusermos a inquirir a origem de topónimos, antropónimos e matérias dos livros catalogados, ou se conseguirmos apreender a etimologia mais profunda dos elementos de composição do glossário laputar, enfim, nessas circunstâncias, tarefas, descobertas, humilhações e perplexidades, o leitor vai tecendo uma narrativa, diria que privilegiadora de uma personagem esfumada atrás da persona do que escreve, o Autor, o que pressupõe que o Autor declina a responsabilidade da biografia do self na competência exegética do Leitor.

Outra personagem, interlocutor paralelo, trazida quiçá do cinema que nos deu a ver o Homem Invisível, é então o leitor. Enquanto tece a narrativa, o leitor vai aprendendo muito, pois não é qualquer escritor que dispõe da bagagem técnica, literária e filosófica que estas obras patenteiam. O Leitor imagina um Autor completamente enfastiado, após horas de compilação de notas de leitura numa biblioteca de ficheiros manuais, visitada à noite por morcegos para se empanturrarem com as traças, a parodiar noutra obra todas as chatezas próprias de uma tese de doutoramento. Por detrás dela ri o “sábio”, o filósofo de antigamente, o que prescrevia sangrias aos doentes, curava do horto botânico e às escondidas produzia a pedra filosofal no atanor com o orvalho colhido em maio, na meia-noite do plenilúnio. Por conseguinte, a estrutura narrativa existe, virtualmente, em suspensão, dependendo, já não do autor, sim do temperamento do leitor. Além desta, existe a biografia de Umbelino Frisão, cujo perfil transparece do que escreveu e outros escreveram sobre ele, fator de criação de uma personagem cuja principal característica é a de se empanturrar com livros, como Gargântua e Pantagruel se empanturravam com comida e vinho e o autor certamente se empanturrou à maneira do bibliotecário organizador destas páginas, dele e minhas.

A terceira obra de Marco Lucchesi, Hinos matemáticos, em comum com as aludidas mostra apenas a dispensa de leitura ordenada do princípio para o fim e de todos os seus componentes. Quanto ao mais, é muito distinto, nos sentidos vários do termo, que englobam também a superior educação e superioridade dos graus académicos obtidos. É distinto pela elegância, subtileza, depuração alquímica dos elementos em cadinho e decantados, por isso diverso pela purificação, que é sempre um subir de degrau em degrau, até aos altos graus. Não esquecendo a originalidade própria de um livro de poemas dedicado à matemática, bem sabendo nós que os hinos são mais comumente dedicados às Lauras, Eurídices, Beatrizes e Virgens Marias. Não esquecendo igualmente que, salvo raras exceções concretistas, experimentais e coevas, os poetas, sobretudo românticos, mas também surrealistas, habituados à falta de razão das emoções e pulsões libidinais, apreciam a escrita tão espontânea quanto jorra da nascente, sendo de todo avessos à necessidade de correções e à ideia de escrever versos com a precisão matemática de uma balança eletrónica, melhor dizendo, de máquina dotada de inteligência artificial, aliás utilizada para os melhores efeitos poéticos desde há décadas, não parecendo entretanto que Marco Lucchesi pertença a esta comunidade científica e artística. De acordo com as suas declarações aos meios de comunicação, ele ama tanto a Matemática quanto a Filosofia e a Literatura, e para escrever poesia matemática não precisa de recorrer a robôs. Assim fica inscrito, de resto, no poema “Indeciso”, em que manifesta um, para nós, falso dilema:

studio la matemática o lascio le donne?

No poema imediatamente anterior, “Nascita di Venere”, fica de resto muito claro que o hino não tem por alvo Botticelli nem a sequência de Fibonacci, sim um representante de le donne, o que prova a nossa hipótese de trabalho de que o autor sabe como hibridar materiais conspícuos pela sua diversão, a exemplo de tradição e modernidade, línguas e glossolalias, símbolos e carateres gráficos, Vénus e Mathesis:

Tua nudez em raios de incisiva luz

em sonhos decomposta

números figuras

 

Nas úmidas meninas dos teus olhos

ó Aᶲrodite

eu pouso meu ardor

 

Corpo sem véu

espuma

Assombro negação

 

Uma observação discordante deixaria neste local quanto à índole dos hinos matemáticos, por se afigurar mais acertado falar de hinos botânicos. Sendo adâmica a natureza dos poemas em que as personagens deambulam, o que temos frente aos olhos é um jardim, podendo inclusivamente falar-se do Éden. Números, fractais, teoremas e equações transmutam-se em flores, exalando, como o nardo, os mais inebriantes perfumes. Firmemos os pés na fortaleza da prova, que igualmente comprova que a beleza é a parte primeira destes poemas:

Os desenhos

              do matemático

e do poeta devem

                            ser belos

Flores

Teoremas

desmaiam

em súbitos

jardins

sob                  crepúsculos

fugazes

A beleza  é a primeira prova

                da matemática

 

Vejamos agora o que se passa com a diversão, e especificamente com a diversão académica, própria dos habitantes das instituições universitárias, que se exprime nas tunas, nas serenatas, nas queimas de fitas, nos livros de autoria coletiva, nas partidas e nas praxes, praxes que hoje tendem para uma estupidez que já tem descambado em morte, e mais valia desaparecerem na vetustez de livros como o sempre por mim lembrado Palito Métrico, cujo título pode não ser bem este, mas refere essa praxe inocente e altamente educativa em matemática, a de medir a ponte sobre o Mondego com um palito. O título, decerto mais longo, como convém ao trabalho académico, é a muito aproximada referência a uma obra das mais famosas, produzida por um coletivo de estudantes da Universidade de Coimbra, na sequência dos anos, estudantes originariamente frades, pois que eles é que sabiam latim, e mais curricularmente o latim macarrónico no qual se redigem as páginas da exemplar monografia, e porque eram frades, no dealbar dos tempos estudiosos, os que frequentavam as escolas catedralícias depois erigidas à categoria de universidades.

Não chega o meu latim ao ponto de avaliar o de Marco Lucchesi, mas não espantaria que um admirador de autores tão humanistas como Rabelais e, como este, cultor de línguas francas e subreptícias, sob o manto diáfano da greco-latinidade e demais poliglotismo, não tivesse produzido a maior algaravia linguística e bibliográfica da modernidade.

Se Marco Lucchesi não leu o Palito Métrico, devia ter lido, se bem que há de ter devorado muita obra fradesca afim, enquanto preparava na biblioteca da Universidade de Coimbra algum trabalho académico da maior responsabilidade. Nesse ínterim, não é difícil imaginá-lo, como a qualquer outro erudito entediado, a copiar e simultaneamente a estropiar as fichas manuais religiosamente conservadas e outras diabolicamente extraviadas das correlativas gavetas de boas madeiras, trazidas dos longes ultramarinos, pau-brasil e pau santo, quem sabe? Estropiar é boa forma de aprender, eu decerto não deliro se recordar que um dos trabalhos de casa encomendados no meu tempo pelo professor Jacinto do Prado Coelho foi precisamente o de recriar por diversas palavras, por consequência para fins de diversão, certo número de títulos da ficção portuguesa, à maneira do Humor de Perdição de Herman José (humorista português), variante do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco (português também, mas ficcionista). A paródia que o exercício implica constitui os alicerces de obras das mais notáveis de todas as literaturas, haja em vista Umberto Eco e Jorge Luis Borges, inventores de livros falsos e bibliotecas imaginárias, mas haja sobretudo em vista o autor do Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão, etc., Lúcio Marchesi, aliás Marco Lucchesi.

Apuleio, com o seu burro de ouro, representa talvez o mais antigo autor na ordem da diversão cuja tendência se patenteia na obra de Marco Lucchesi. Diversas marcas das patas e outras partes anatómicas da asinina cavalgadura impressionam as sensíveis folhas dos livros de Lucchesi, a mais importante delas, mais do que o logos “asinino” e a licença para imprimir, apesar de tudo, será porventura o nome de ambos, pois em ambos inquieta o mesmo nome luciferino: Lúcio Apuleio e Lúcio Marchesi.

É no entanto com François Rabelais que mais me agrada comentar o memorial da diversão, tanto mais que ele figura, com a biblioteca imaginária de Saint Victor, na matriz do Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão, etc., e decerto noutros pontos da viagem empreendida pelo autor brasileiro nos diversos pisos do edifício cultural europeu, até europeizar a ponto de se lhe poder atribuir em génio cultural essa característica. François Rabelais, que deve ter estudado na escola catedralícia de Notre Dame que veio depois a chamar-se Sorbonne, autor de monumental obra que extravasa de um Gargântua e de um Pantagruel que tantos avaliam como excelente manual de cozinha, e aos livros excede ainda em ditos de eterna filosofia como “O hábito não faz o monge” e “O fruto proibido é o mais apetecido”, em comum com Marco Lucchesi/Lúcio Marchesi, além da veia do riso e do excesso, da biblioteca imaginária e do imaginário da biblioteca, comunga ainda o gosto pelo anagramático alterego a que usualmente se chama “pseudónimo”. Sob a ameaça da censura da Sorbonne, Rabelais escreveu sob anagrama do seu próprio nome, Alcofrybas Nasier. Tal não evitou que Pantagruel passasse ao rol dos livros obscenos e censurados, o que na verdade é uma honra, tantos anos passados. De facto, em 1564, o Index librorum prohibitorum, promulgado pelo Papa, classificou as obras de Rabelais como heréticas, talvez por às receitas de cozinha ter preferido as da sempre louvável Alquimia.

E neste passo cumpre referir que, sendo Marco Lucchesi um autor de equivalentes excessos e transgressões, estes não se manifestam de igual forma, porque desnecessário nos nossos tempos, creio bem. O acervo de vocábulos iconoclastas esvaziou-se de paixões, pelo menos em Portugal, quando jovens quase adolescentes empreendem programas televisivos sobre a sua vida mais sexual do que amorosa, para tanto usando o vocabulário que a Sorbonne rotulou de obscenidade em autores como Rabelais. Passados ao uso corrente, e o fenómeno deve ser global e não apenas português, os termos esvaíram-se de poder de faísca e escândalo, daí por certo a razão de não figurarem nas obras de Umbelino Frisão, Lúcio Marchesi nem de Marco Lucchesi. Em todo o caso, como já referi, o temperamento do escritor brasileiro é demasiado requintado para se comprazer em grands mots; ele tende para a estilização, para a beleza depurada patente na jardineira poesia dos Hinos matemáticos. No entanto, de forma residual, dir-se-ia, figuram vestígios do léxico fescenino aqui e ali, a exemplo da expressão Rudimentos da língua laputar, a menos, claro, que seja pecado de pensamento da minha parte ler na língua dos habitantes de Laputa algum atrevimento.

A ilha de Laputa, pátria dos falantes da língua laputar, é a erroneamente identificada por Gulliver como Lilliput. O pequeno gigante deve ter usado um mapa falso, costume aliás dos navegadores, para afundarem a concorrência, ou estaria delida a caligrafia, porém a sílaba final, “put”, identifica ambas inequivocamente como a mesma e só uma. De resto, se dúvida houvesse, nada como recorrer a Alfred Jarry para ter a certeza. Se atentarmos no frontispício dos Rudimentos da língua laputar, verificamos que constituem uma proposta patafísica que nos dispensa de chamar Ubu à colação:

Bazati dir Harstä Laputar

Rudimentos da Língua Laputar

Binodanä Patarfișä

Proposta Patafísica

 

A língua laputar é muito curiosa, porque, tal como Marco Lucchesi o declara, é adâmica; de resto, é adâmico também o jardim dos Hinos matemáticos. Significando isto que no implícito Paraíso viveram felizes Adão e Eva, antes da expulsão devida ao pecado que Rabelais justificou com o seu famoso aforismo, O fruto proibido é sempre o mais apetecido, razão suficiente para a obra ter sido considerada herética. Esta circunstância edénica, adicionada a vários pormenores significativos dos Rudimentos e outras obras do autor brasileiro, aproximam-no não só da cultura europeia em geral como da lusitana em particular. Basta dizer que o principal veio da Filosofia Portuguesa é o saudosismo, e que a saudade, projetada no futuro de eternidade pelo desejo do Desejado/El-rei D. Sebastião, essa é saudade dos tempos felizes em que Adão e Eva viveram no jardim do Paraíso. Saudosismo é então o desejo de encontrar além da morte o mesmo Paraíso que existiu na Criação. Lembremos que está em causa um caso particular, especificamente lusitano de messianismo, o que não é estranho as estudos aprofundados que levaram Umbelino Frisão a publicar obras como A morte do sebastianismo, publicada em 1972 em New York, pela casa Theodor Books, e do anterior ensaio dedicado a essa figura que tantos confundiram com o Messias, «Inimigos de Salazar», de 1948, dado à luz em Moscovo, nas famosas edições Mir.

Seja por vontade de paródia seja por partilha de ideais, o sebastianismo implícito nesse desejo de Regresso ao Paraíso, para atalhar caminho com o título com que Teixeira de Pascoaes explica do que é a saudade que dá fundamentos à cabalística Filosofia Portuguesa, acrescido de um logos espermático que a mim remeteria diretamente para a obra de um dos seus legitimadores, António Telmo, sem esquecer o lamento tão camoniano de Marco Lucchesi, quanto ao aprofundamento da língua laputar: “Teria sido oportuno um acurado estudo etimológico, mas a tanto não chegaram meu engenho e arte”, tudo isto nos leva a considerar repleta de portuguesia a linguagem, a cultura e até a disposição de espírito do autor, ao conceber obras de tão alta valia e empatia com os lusos ancestros.

A respeito da língua laputar, queria assinalar que ela é tão matemática na sua estrutura gramatical que bem podia ser uma língua falada em alguma outra ilha ou país, de tal modo o glossário e a sintaxe nos são familiares, o que de certo modo vai contra um demasiado fácil enquadramento do autor nas práticas do surrealismo, de onde o afastaria em razão das suas amarras a uma estética avessa à desordem e ao delírio.

Um assunto de relevo deve anotar-se ainda, por revelar que a evolução também se manifesta na cultura e nas exigências académicas: se Pantagruel, da biblioteca de Saint Victor, só coligiu títulos, o que lhe valeria classificação negativa, Lúcio Marchesi procede de maneira a atingir o máximo na escala de valores, 20 em 20, já que a sua técnica de listar bibliografia é perfeita na complexidade de elementos a recolher: autor, título, editor, local de edição, número de páginas, ilustrações, e data. Acrescem outros pormenores, claro, tratando-se de iconografia, pois é necessário distinguir entre aguarela e óleo, ou entre xilogravura e litografia. Sendo poliglota a biblioteca de Umbelino Frisão, Lúcio Marchesi, compilador, também denota superior conhecimento das variadas línguas em que foram escritas as obras, poucas gralhas havendo a registar. Neste campo sensível das gralhas, sabendo-se que são aves palradoras e bisbilhoteiras, é necessária detença para apontar uma falta a Marco Lucchesi: a de errata. A errata é fundamental nas obras escritas sob censura inquisitorial, e não será ociosa a referência ao facto de o Catálogo ter obtido superior licença para ser impresso, transcrevamos:

 

Nihil Obstat

Imprimi Potest

Fid. Cav. Hig. V.Q.L. Dati

Aureum Asinorum Collegium

 

A errata é tão fundamental que penso residir nela o ninho da Língua das Aves, em que também nidificam os Rudimentos da língua laputar. Obra em que Marco Lucchesi, se não bebeu, podia ter bebido, é a Ennoea, de Anselmo Caetano Munho’s de Avreu Gusmão e Castello Branco, cuja errata começa logo com o título, que saiu Ennoea em vez do alegadamente pretendido Ennea. Melhor será transcrever na íntegra o título que, apesar da errata (não anexa, sim impressa com a obra a que pertence), nunca foi corrigido, nem pelo autor, quando reparou na gralha, nem em edições póstumas: Ennoea ou Aplicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal. A errata, nesta obra, é parte intrínseca da Ennoea, tão extensa e aparatosa que mais parece outro livro, aquele que, a ter sido exposto, talvez não tivesse recebido o Nihil Obstat. É hipótese minha que, em tempos de censura prévia e de Inquisição, os autores se socorrem de línguas laputares, diplomáticas, verdes ou das gralhas, para passarem para o leitor o que têm a dizer, e outra técnica de despiste para o efeito é a errata.

Convenhamos que um autor como Marco Lucchesi, contemporâneo nosso, com quase total liberdade de expressão, não precisa de se acautelar com censuras, a não ser as de autores como aquele que agora escreve, pois nada mais é o crítico atual do que o antigo censor. Era hábito dos poetas árcades, v.g., submeterem os seus versos à “censura” dos colegas, como eles próprios declaravam.

Se Rabelais se abrigou sob o anagrama de Alcofrybas Nasier, Marco Lucchesi abriga-se sob o de Lúcio Marchesi na sua já reiteradamente referida obra, Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino, etc..

A modernidade, sem a qual não sobreviveríamos nesta faina de escrever, musiquiar, dançar ou pintar, cavou um fosso entre obra de arte e público, ao eliminar a diversão. O entretenimento não desapareceu da nossa vida, mas alojou-se, em maior abundância, noutros meios que a modernidade também pôs à nossa disposição para veículos de arte, tornados domésticos no correr dos tempos. Hoje são individuais além de domésticos ou familiares: rádio, televisão, Internet. A diversão, dita entertainment pelos grandes produtores e difusores de audiovisuais, não só passou a ter assento maioritário na mídia, como se diz na língua laputar, se não erro muito, como se transmudou em indústria com o sequente comércio, tão para todos em todo o mundo que se chama “global”. Então, nos dias que correm, o riso é um produto entre mil para consumo, já não público, antes largamente privado, uma vez que cada habitante do mundo tem o seu televisor, o seu laptop, o seu high phone, entre uma dezena de outros artefactos para o efeito em difusão nas feiras tecnológicas, a sair das fábricas e em congeminação. Em suma: salvo raras exceções, como o Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão, etc., e os Rudimentos da língua laputar, de Marco Lucchesi, a diversão migrou para os géneros próprios dos meios de comunicação de massa. A arte culta, desprovida desses poros do bom humor, tornou-se demasiado circunspecta e por vezes ridiculamente pomposa. «Uma seca!», diria Eça de Queirós, um romancista português. Mérito grande de Marco Lucchesi foi o de ter recriado excelente literatura paródica, parte dela protagonizada por Umbelino Frisão, esse grande homem de quem Mário Soares referiu, no elogio fúnebre, junto à sepultura no Mosteiro dos Jerónimos: “Umbelino, Camões e Fernando Pessoa formam a sublime trindade portuguesa. Descanse agora em paz, o mestre das nações”.

Umbelino Frisão foi o último dos filósofos naturais, toda a vida tendo votado à filosofia da litosfera, de Urânia e de outros acidentes da crusta celeste. Esta personagem suporta quase sozinha uma narrativa indireta, a tecer pelo leitor, e que por isso é razoavelmente aberta: não se trata da obra aberta, se bem que fique patente em tudo o nosso mestre Umberto Eco, sim de personagem aberta, a criar pelo leitor. Umbelino Frisão, que não enche tanto o estômago como Pantagruel e Gargântua, mas que enche mais o espírito com palavras do que eles a barriga com vinho e javali no espeto, tem costela de “filósofo natural”, esse proto-cientista que, como Rabelais, foi simultaneamente médico, padre, escritor, e o que o “médico” subentende: botânico, para com as plantas criar as suas poções mágicas e mezinhas. Nascido em Coimbra a 6 de abril de 1931, Umbelino Frisão é um Pantagruel mental, que logo aos dois anos de idade começa a estudar na Universidade, e o quê? Pois, ele estuda, entre 1932 e 1941, ontologia com o professor Ernst Luwer, lógica formal com o doutor Czeslaw Wysziynski, física quântica, e geologia comparada com o professor James Hutton. Em 1945, com catorze anos, já sabia tudo da filosofia hídrica e publicara o primeiro tomo da Filosofia da litosfera. Nos dois tomos desta hercúlea obra repousa a sua maior coroa de glória.

Recentemente, Felipe Verdi lançou em dois volumes A presença da música na obra de Umbelino e Anastássia Filipovna coordena um projeto de livro, Água mole em pedra dura: diálogos entre Goethe e Frisão. A última obra sobre o nosso excelso Umbelino, que aprovo e louvo, como das jóias mais raras da literatura paródica dos nossos tempos, já o sabemos, foi publicada em 2017, e intitula-se, finalmente em citação integral, Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão Doctor in Utroque Jure Sátrapa do Larapistão Grão-Mestre dos Incunábulos Imateriais Pontífice da Imaculada Ordem das Traças Intérprete da Filosofia Urânia Judiciosamente Compilado pelo Doutor Lúcio Marchesi, e exibe a autoria de Marco Lucchesi.

ESTÉTICA DO LABIRINTO
A POÉTICA DE MARCO LUCHESI

(ORGS.)
Ana Maria Haddad Baptista
Márcia Fusaro
Nádia Conceição Lauriti

São Paulo, Patuá, 2018