venda das raparigas . britiande . portugal . abertura: 2006

A respeito do Devir-Mulher do Trabalho
TANIA MARA GALLI FONSECA

 

Que relações podemos estabelecer entre a gestão hospitalar e a luta contra o que nos torna fracos?

Responder a esta questão, certamente nos remete a uma análise dos modos de trabalhar institucionais, modos estes, por sua vez, articulados à políticas de saúde que nutrem um certo modelo social, fomentando-o na direção desejada. Não podemos, aqui, deixar de mencionar a grave crise que atravessa o sistema nacional de saúde, crise esta que pode ser colocada tanto em termos materiais como imateriais, por se constatar tanto um recuo do Estado no fomento e financiamento de gastos públicos em saúde, incluindo-se aí a pesquisa, desenvolvimento tecnológico, expansão dos quadros de pessoal e sua capacitação permanente, como nas imensas dificuldades constatadas em implementar as reformas previstas na área. Problemas de ordem vital, uma vez que, mesmo dispondo o sistema de dispositivos legais e discursivos para a transformação do modelo de atenção tradicional e já superado, não encontra a suficiente alavancagem dos mesmos por parte dos sujeitos que devem operar as mudanças, sejam elas da ordem gerencial e gestionária, sejam da execução e da prática cotidiana. As novas propostas carecem de recursos de todas as ordens para sua implementação e acompanhamento, para fins de fazê-las vingar. Aqui, mais do que adentrar na questão, apenas procuro fazer emergir alguns dos desafios atuais que fazem vez de um rápido contexto para a reflexão que venho propor.

Quando invoco elementos a respeito dos modos de trabalhar associando-os à gestão institucional, talvez não fique evidente de imediato que tal trabalho não se refira exclusivamente aos usuários do hospital, seus chamados pacientes ou clientes. Incluo, como parte estratégica e indispensável da gestão hospitalar, também aquelas proposições e práticas que configuram seus próprios processos de trabalho, os modos pelos quais busca fazer o processo andar na direção desejada, a maneira como hierarquiza e atribui poder aos saberes do seu corpo coletivo de trabalhadores, aos modos como avalia seus erros, sejam de decisão sejam de execução e controle, como reconhece os méritos e impulsiona o ânimo de seus trabalhadores. Os modos de trabalhar não são inócuos e estão longe de dizerem respeito tão somente à sua finalidade-fim. Não são exteriores aos sujeitos que os produzem; eles incidem, se refletem sobre eles tornando-os suas imagens refletidas. São, pois, produtores de sujeitos, e é desta maneira que vida e trabalho se encontram indissociados, levando-nos a problematizar a ordem organizacional como uma espécie de usina de produção de sujeitos, comprometida com valores e com um certo modelo de humano e, por conseguinte, com uma concepção de saúde coletiva. Acreditamos mesmo que os efeitos subjetivantes dos modos de trabalhar institucionais incidem nos próprios modos de cuidar e tratar os usuários, associando-se uns aos outros, configurando uma cadeia de intermináveis ressonâncias. As práticas terapêuticas e sua potência de afetar os corpos doentes e em sofrimento, embora possam vir a ser compreendidas no contexto de uma imensa rede de saberes e experiências coletivas, são veiculadas e se expressam, junto ao paciente, inevitavelmente através de um agente de saúde ele próprio possuidor de suas dores e implicado com o constante combate que deve travar para se manter saudável. Não seria desejável que pudéssemos perceber e ver esta relação e aquilatar o quanto ela torna delicado o processo terapêutico, e nos perguntarmos o quanto ela pode vir a potencializa-lo ou não? É evidente que me refiro aqui ao chamado trabalho imaterial de cunho afetivo que é transportado no seio dos procedimentos médico-hospitalares. Refiro-me, aqui, ao cuidado como pertencente à ordem de uma produção imaterial, de espécie afetiva e que pode vir a se associar à vontade de potência dos corpos no combate com o aquilo que os está a enfraquecer. Falo, aqui, de uma espécie de trabalho cujos efeitos se revelam como expansão da vida dos corpos, trabalho de afecção, da ordem de uma sensibilidade aquém das palavras. Trabalho que vai se implicar no próprio cerne da dor dos corpos, a seja, a experiência de sua finitude e que possui a capacidade de facilitar os processos de recuperação do adoecer. Falo aqui de um paradigma relacional que se pauta pela verdade que o afeto impõe, falo de um modo de trabalhar que, ao considerar que não temos um corpo e sim que somos um corpo, atua exatamente naquelas lacunas produzidas pela doença, nas quais pode prevalecer uma vontade de nada, dando lugar à vida pequena e sem brilho: vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, imobilismo doentio. O corpo doente precisa encontrar um novo jeito de ser, precisa re-inventar-se ...

E, é assim que pergunto:

O que poderíamos vir a escutar e ver caso nos aproximássemos de um hospital, nos inclinássemos sobre o seu corpo, tal como uma mãe ao sustentar seu bebê enquanto o banha?

Poderíamos dotar o nosso olhar dos mesmos efeitos daquele gesto solícito no qual se condensam diversos sentidos? Poderíamos inscrever tais efeitos como pertencentes à zona do que entendemos como ação terapêutica? O que pode um olhar, um dizer, um escutar, um fazer? Pode arrastar consigo a vontade de potência, a resistência da vida, transformar- se em ato clínico e em ferramenta de combate contra o que nos enfraquece? O que pode um hospital em relação a este combate, enquanto ele próprio, como equipamento social necessita também de cuidados para com seu próprio corpo e sua própria saúde? Como entender que o hospital, enquanto dispositivo de atenção e promoção da saúde, não disponha ele mesmo de elementos que lhe garantam uma certa imunidade contra o seu próprio adoecimento, miserabilidade e precarização? Como entender que aquele que cuida e trata também deve ser cuidado e tratado? Defrontámo-nos, aqui, com um paradoxo que nos aponta a necessidade de virmos a reconceituar a própria noção de saúde/doença que tem tradicionalmente inspirado as práticas, as políticas e mesmo as expectativas dos cidadãos comuns em relação à saúde. E, então, é que perguntamos: O que pode um hospital em relação à saúde se a considerarmos como imanente ao próprio viver cotidiano das populações e seus sujeitos e não mais como assunto exclusivo de especialistas? Se a considerarmos como todo o elemento vital, ou seja, como conquista diária, como combate contra adversidades cotidianas, não sendo estável e tampouco inata, ideal e garantida? O que pode um hospital se considerarmos a saúde como o permanente movimento de combate contra o que nos enfraquece seja física, seja mentalmente? O que pode um hospital quando se concebe que ser saudável não diz respeito ao alcance de um estado de calma e estabilidade, mas diz respeito exatamente ao modo como se enfrenta a variabilidade, esta sim considerada como o aspecto predominante da vida. Aqui, podemos pensar a questão da saúde como associada aos processos de subjetivação e associada, pois, ao modo pelo qual construímos normas para o nosso viver e as desmanchamos e reconstruímos frente às vicissitudes, esculturando-nos tal qual um rio escava o seu leito enquanto corre e flui. Subjetivação e saúde se associam exatamente nesta delicada passagem que faz do corpo uma ponte para o mundo, ponte esta que estará regida por índices variáveis de transversalização, ou seja, por capacitação maior ou menor de abrir-se à própria diferenciação e fazer-se passagem de novos possíveis associados à expansão da vida.A doença, então, individual e institucional, passa a sinalizar a dificuldade de virmos a alterar a situação que nos agride física e psiquicamente, significando um aprisionamento, uma captura nos fluxos do devir. Os processos que levam ao adoecimento são, assim, bastante complexos, já que apresentam não só uma dimensão individual, mas principalmente, coletiva. Referir a capacidade do corpo – individual e institucional, repito - em reorganizar-se diante de adversidades, abrir-se para criar novas normas, para contrair novos hábitos, para gerir de um outro modo as forças que o fustigam, não significa celebrar uma espécie de voluntarismo espontâneo do sujeito individual, focando-o como responsável único pelo seu processo de adoecimento. Não temos dúvidas da singularização do adoecimento e não pretendo reafirmar gastas fórmulas generalizantes. Cada corpo é único em seu modo de conectar-se com o mundo, em seu modo de deixar-se afetar; a cada instante o corpo é todo o seu passado, passado este que o reveste como uma espécie de memória esquecida, como um duplo, podendo-se pensar mesmo que o corpo se faz por sua imaterialidade, ou seja, pelas marcas sensíveis que nele se imprimem indelevelmente e que se fazem presentes, com toda a intensidade que as caracteriza, a cada momento do presente.

Para fins desta comunicação neste momento, é importante que tomemos cada corpo como tradução única dos encontros que teve com o mundo no qual se enraíza. Não há corpo sem memória, sem este avesso de registro e tradução, não há corpo que não seja antes de mais nada uma dobra do mundo, uma das possibilidades infinitas de manifestação das forças que habitam a exterioridade. Assim, é que o corpo de alguém ou de algo pode ser concebido como o próprio si, sendo efeito sempre inacabado e em permanente esculturação a partir dos modos pelos quais cada indivíduo/ instituição se apropia das verdades de poder e saber de seu tempo. Falo de corpo como indissociado da psiquê, compondo com ela uma espécie de cumplicidade, o que nos leva a romper com a compartimentalização entre saúde física e mental para pensá-la como processo de subjetivação. Ora, sabemos que a subjetivação a que nos referimos não pode ser reduzida, por sua vez, ao âmbito dos indivíduos e à esfera de sua interioridade. Ela é social e coletiva, sendo que cada sociedade produz seu modo de subjetivar, modo este que se propõe como impessoal, a-subjetivo, sendo constituído por inúmeros elementos de natureza diversa, heterogêneos, elementos humanos, econômicos, inumanos, tecnológicos. Composta de ilimitadas potencialidades de vir a ser, estas serão atualizadas pelos diversos agentes nela acoplados. A subjetivação dos corpos, ou seja, sua inscrição nos regimes de verdade e de poder vigentes, sua transformação em corpos juramentados, úteis e produtivos, é um processo regido pela dinâmica da complexidade e da incerteza, e cabe-nos, aqui, indagar:

Como tal complexidade vem afetar e desafiar a gestão e o funcionamento de um hospital, mormente de um complexo hospitalar? Não se torna difícil visualizar tal complexo como um arquipélago situado no âmbito de um imenso mar e banhado pelas circunstâncias do mesmo. Da mesma forma, não se torna difícil imaginarmos as relações entre as diversas ilhas pertencentes ao arquipélago, sua posição específica em relação ao eixo central que as coordena, o grau de saber e de poder que delas emana tanto para o centro quanto para a sua vizinhança, sua diferenciação em relação à natureza de suas práticas , enfim, não se torna difícil sustentarmos que o sistema que move o complexo hospitalar não pode ser reduzido a fórmulas gerais e universais, a transcendentais constantes que nos garantiriam falar de cada uma das ilhas como um retrato de feições estáticas, em estado calmo e definido em sua identidade e posicionada num curso de tempo cujo fim é o progresso e a ordem. Não, as noções de complexidade e de incerteza que nos permitem pensar as instituições sociais, tais como o hospital, como corpos em equilíbrio instável, fazem-nos ver que devemos renunciar a pretensas ilusões de trégua e descanso e isto, não apenas pelo muito que devemos fazer, mas pelo sempre fazer próprio da vida ... este fazer e refazer, este eterno retorno não para a permanência, não para a solidificação dos estados vigentes, mas para darmos conta do processo pulsional que conduz tudo e todos à diferenciação e superação, sem contudo, nos dotar de mapas e roteiros prévios. Neste sentido, ao considerarmos que o finito-ilimitado é a condição do que é vivo, podemos invocar, como sua correlata, a angústia humana que atravessa indistintamente a todos e se manifesta como o medo de morrer, de fracassar e de enlouquecer. É assim, que todos pertencemos à grande dor e que tecemos nossa existência buscando o seu apaziguamento. Arranjar normas e regula-las permanentemente, constitui-se como o nosso trabalho de auto-constituição, trabalho este que será feito com maior ou menor abertura para novos padrões e novos modos. Na doença, o sofrimento se intensifica e materializa e este trabalho de subjetivação continua devendo ser impulsionado também pela instituição de tratamento e cuidado. A questão da saúde, em nosso ponto de vista, acena para a problematização da própria vida cotidiana, uma vez que, aqui, problematizar significa lutar contra o que nos enfraquece.

Para finalizar, gostaria ainda de articular alguma coisa do que chamei de trabalho imaterial e do devir-mulher do trabalho. Sabemos que as atividades concernentes a um hospital podem ser inscritas no que hoje se denomina trabalho afetivo, que envolve a produção e manipulação de afetos e requer contato humano e proximidade. São atividades, portanto, que carregam um enorme potencial de biopoder, ou seja, poder de criação da vida, de produção de subjetividades coletivas e de sociabilidade. Inscrevem-se, assim, como importentes eixos da constituição do próprio social, uma vez que o que se cria nas redes de trabalho afetivo são formas de vida.

Se, agora, focarmos o conceito de devir-mulher do trabalho veremos que ele gravita como um dos aspectos mais centrais de nossa reflexão e, sobretudo, da própria revolução atual dos modos de trabalhar na sociedade pós-industrial. Na realidade, não é mais possível imaginar a produção das riquezas e dos saberes sem passar pela produção de subjetividade e, portanto, da reprodução geral dos processos vitais. As mulheres estão nocentro do problema. Foi precisamente porque estavam no centro da produção da subjetividade, ou seja, da vitalidade por excelência, que elas foram excluídas da velha concepção da produção. Na concepção clássica, distinguia-se entre produção de mercadorias e serviços e reprodução da força de trabalho, esta destinada exclusivamente às mulheres e as considerando excluídas da capacidade de produzir valor, valor econômico. O trabalho da reprodução humana , da educação dos filhos e dos serviços inerentes ao funcionamento doméstico eram destituídos de valor econômico, mas impregnados de vida. Trabalho das mulheres sempre foi, portanto, associado à vida, o que se pode verificar ainda nas profissões de professora e enfermeira, por exemplo, consideradas feminilizadas exatamente por se sustentarem em saberes e experiências acumulados pelas mulheres milenarmente. Contudo, seria ingênuo pretendermos associar o devir-mulher do trabalho exclusivamente às mulheres, uma vez que estas podem estar funcionando desde uma ótica masculina. O que pretendo chamar atenção é para a potência de afecção, para a potência de criar vida que existe em todos os corpos, independentemente do seu gênero masculino ou feminino, e assinalar, que no caso das mulheres, esta potência, por força das circunstâncias sócio-culturais foi altamente estimulada e intensificada. Assim, devir-mulher do trabalho aponta para o próprio sujeito como o principal e inalienável instrumento de trabalho, fazendo-nos notar nos modos de trabalhar uma escavação do próprio si, um uso de si no sentido de afetar e fazer passar algo de um corpo ao outro.

No Dia Internacional da Mulher, quero congratular-me com esta idéia extraordinária que e observar que as mulheres não serão as únicas a ocuparem-se de tudo isso. Está em andamento um novo modo de trabalhar, associado imprescindivelmente aos afetos, à capacidade de produzir subjetividade e afetar o processo da vida, portanto, um biopoder inerente ao modo de trabalhar que não dissocia produção de bens e serviços de produção de sujeitos, e que assim, nos faz perguntar se o devir-mulher do trabalho significa também pensar o seu devir-político? O que significaria isto? Poderíamos pensar encontrar-se em andamento um novo modo de trabalho que potencializa o combate contra aquilo que nos enfraquece e nos tira a vitalidade? Teria este novo paradigma do trabalho a força de criar mesmo uma nova sociabilidade fundada na associação de afetos?

 

Palestra proferida no Dia Internacional da Mulher ( 08.03.04) no Hospital Fêmina do Grupo Hospitalar Conceição

A Autora é Psicóloga, Doutora em Educação, Professora do Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS

 
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