MARIA ESTELA GUEDES A poesia na óptica da óptica |
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Henrique Dória apresenta várias cores neste livro, "Mar de Bronze" (1), e provavelmente em outros. Desde a charrete verde até ao vento amarelo, desde os lenços e véus vermelhos (a assinalarem uma poesia velada) até ao lindo cavalo turquesa, decerto todas as cores podem ser lidas - "lidas" e não "vistas", porque a poesia de Henrique Dória, e a poesia em geral, é mais conceptual do que perceptiva, apela para as emoções e para a inteligência mais do que permite as experiências sensoriais. Porém seleccionei o negro da obra ao negro por ser a cor dominante, a que abre este livro, ou este "Sonho escrito em papel negro" (ver o poema na íntegra, em baixo). Aceite-se o plúmbeo das estrelas de chumbo (pág. 32) e das florestas de chumbo (poema "Cedo", em baixo) como quase negro, e ficamos com o assunto cromático reduzido à sua expressão iniciática mais simples: o alquimista, reza a lenda, é aquele que transmuta o chumbo em ouro, passando por três fases de um trabalho, ou de um caminho, identificáveis por uma cor de preparado no forno, sobre o qual agiu o calor do fogo: obra ao negro, obra ao branco e obra ao rubro. E cheguei com isto a dois problemas, um, fácil de resolver, o outro, nem por isso: o que é representado no ouro, em "Mar de Bronze"? Ou o que é que se transmuta de chumbo em ouro? Tradicionalmente, o chumbo é o nosso próprio "eu", que temos de civilizar, descendo às nossas deseducadas entranhas para delas sairmos cantantes como Orfeu. Alterando um pouco a rota da tradição, direi no entanto que, em Henrique Dória, tal Peregrinatio ad loca infecta, para recordar um título-programa de Jorge de Sena, só se concebe como ágape: é amando com elevação que se mortifica na obra poética-alquímica. É para ser amado que sofre as provações do aperfeiçoamento, com a inerente morte iniciática, tal como declara nos versos: "Despede-te de ti [...] / Se queres que o teu caminho / Seja um poema mais tarde" (texto na íntegra, em baixo). O segundo problema é um osso muito duro de roer: como se distinguem os usos, profano e sagrado, não só das cores, como de outros símbolos, como os evocados no parágrafo anterior, nos diferentes poetas? |
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Voltando à minha pergunta inquietante: o que me permite garantir que certos poetas usam os símbolos de forma ingénua, não programática, e que outros o fazem por serem alquimistas ou praticantes de ritos sagrados? Resposta fácil é dizer que se conhece pessoalmente os poetas e alguma coisa da sua biografia. Tudo o mais é duvidoso, e algo estatístico: um poeta profano não escolhe tanto e tão criteriosamente. No caso de Henrique Dória, temos insistências e um grémio de símbolos que, com baixa probabilidade, se encontrariam todos juntos em poetas como Fernando Botto Semedo, Carlos de Oliveira, ou mesmo Herberto Helder, autor com uma grande capacidade mitificadora, que torna possível o seu encontro com o secreto, apesar da sua qualidade de paisano - ou profano, como se preferir. Vejamos alguns desses símbolos: o chumbo - na obra alquímica é necessário transmutar o chumbo em ouro, ou transmutar a madeira bruta da floresta em prancha polida; o triângulo; a morte sob o signo solar, isto é, a inexistente morte do neófito, de que fala Fernando Pessoa; a escada - símbolo da elevação de graus inferiores a superiores, até se atingir o posto mais alto de todos na linguagem simbólica, a exaltação; a vieira, o bordão, símbolos igualmente de passagem, mas numa vertente de peregrinatio, aqui explicitamente dirigida a Santiago de Compostela, patrono dos alquimistas. Em resumo, em Henrique Dória encontramos as cores numa dimensão simbólica própria de ritual. Elas não são tintas para pintar, representam feixes de informação espiritual, identificável pela presença de símbolos complementares, os mais importantes dos quais são a escada e o triângulo. Tudo isto permite afirmar que o livro, ou o negro, entre as suas outras cores, se integra na simbologia maçónica. |
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Sonho escrito em papel negro | ||||||
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Cedo | ||||||
Cedo Galerias de água negra Não Henrique Dória, Mar de Bronze, pág. 15 |
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Despede-te da casa | ||||||
Despede-te da casa E envolve-te em argila marinha Se queres que o teu caminho
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(1) Henrique Dória, Mar de Bronze, [Porto], Edições Xerazade, 2003 (2) http://www.triplov.com/Cor/optica-da-optica/Branco-negro/Botto-Semedo.htm (3) http://www.esoterikha.com/grandes-misterios/templo-de-salomao/enigmatico-mar-bronze.php |
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