CARLOS MACHADO ACABADO
Um acto de... colagem

Uma realidade dificilmente ignorável dos nossos dias (denunciada onde quer que ainda—‘malgré tout’…—se pense um pouco) prende-se com a constatação da total “queda em desuso” da reflexão e da crítica séria dela derivada enquanto partes integrantes, uma e outra, do próprio existir, individual e colectivo, mais básico e essencial, dos indivíduos.

Falo, claro, daquilo a que chamo o completo “vazio reflexional” gerado, de forma cultu(r)almente típica, em torno das relações, quer entre os indivíduos e eles próprios, quer das que, de igual modo, deveriam estabelecer-se (mas também essas se acham ausentes, não se estabelecem!) entre esses mesmos indivíduos e as diversas componentes do social e do cultu(r)al no seu todo.

O autor destas linhas “é do tempo em que” a experiência das tertúlias de café, tão prósperas e vicejantes quanto era possível em tempo de ditadura, preenchiam um ‘espaço comunicacional’ e (com alguma frequência…) também reflexivo, crítico, importantíssimo que a «pós-modernidade demomórfica» dos nossos dias—amiúde ingenuamente confundida, como é sabido, com Democracia…—foi fazendo desaparecer por completo.

Em lugar dos “velhos” grupos ‘do Leão’ (num dos casos mais clássicos e famosos), ‘do Gelo’ ou, mais modesta e mais anonimamente, ‘do Palladium’ ou do ‘Monte Carlo’ e por aí fora, trouxe-nos, a tal “pós-modernidade demomórfica”, a televisão e, com ela, entre diversas outras coisas—algumas (raras) aproveitáveis, a maior parte horríveis—a padronização generalizada do gosto e da opinião, o achatamento absolutamente aterrador das “ideias”—numa palavra: o “junk judgement” ou, se assim se preferir dizer, a “inteligência pronto-a-comer”—numa paráfrase modesta da clássica locução de Gracq…

O que define esta nova, pós-moderníssima, maneira de… “pensar” e de “comunicar” é, diria eu, numa palavra a unidireccionalidade (assim como a fatal unidimensionalidade que dela naturalmente deriva) mais ou menos dissimuladas mas nem por isso menos efectivas e reais, do próprio “pensamento” assim como da… “comunicação” em torno dele centrada.

Do “consumo” televisivo (uma forma prática de “consumo cívico” e até politico...) à percepção completamente disfuncional da comunicação como uma forma de auto-negação crítica, “dourada e feliz” ou de sujeição intelectiva e inteleccional activamente procurada e, por isso, a prazo convertida em “ideal cultu(r)al perfeito” (o “produto cultu(r)al” como algo que não se faz verdadeiramente mas antes se compra já… per/feito) foi, na realidade, um pequeno passo.

…já dado aliás pela—diria eu—esmagadora maioria dos cidadãos dessa imensa “Subúrbia-sem-Urbe”—“circunferência pós-cultural e pós-política completamente desprovida de centro reconhecível”—que é a sociedade “Ocidental” (pós?) moderna, genericamente considerada.

Há a “Net”, claro…

Mas a “Net” não muda, na realidade, em si mesma, o que quer seja de verdadeiramente essencial neste (des) processo de esvaziamento e de firme institucionalização da “solidão/aridez reflexiva e comunicacional” que caracteriza a existencialidade na/da “Subúrbia” de hoje: na maior parte dos casos, a “Net” operará como uma espécie de “deserto comunicacional dourado e festivo” onde milhões de “vozes” se limitam a clamar, dia a dia, no mais absoluto isolamento e na mais completa solidão existencial—assim como (lá está!) comunicativa.

É, no fundo, mais angustiante e medonho do que (sequer remotamente) esperançoso o que resulta do acto de ligar o monitor de um PC qualquer e começar de imediato a “assistir” ao “espectáculo”… beckettiano dado por milhões de “cabeças” sem corpo, sussurrando, vociferando, ciciando, esbravejando, apostrofando, sibilando ou gritando desesperadamente as suas solitárias mensagens para o vazio—para um literalmente insondável “buraco negro virtual” de onde ocasionalmente emergem para “responder-lhes” outras vozes similarmente incorpóreas e decapitadas, vivendo um análogo desenraizamento e uma em tudo idêntica desintegração…

“Espectáculo beckettiano”, disse—e não foi, obviamente, por acaso que o genial criador de “Godot” concebeu o seu angustiante “All That Fall” como um “espectáculo” ou como o que hoje chamaríamos talvez uma... “instalação radiofónica” onde o facto de as vozes surgirem como que perdidas (“égarées”) dos respectivos (ou dos… putativos?) corpos deveria “aparecer” sempre ao “espectador” (assim o quis Beckett) como sugerindo, de forma inequívoca a mutilação e a des-integração que nele, Beckett, são, como ninguém ignorará, duas constantes absolutamente distintivas e essenciais…

Ora, é tendo muito claramente todos estes aspectos presentes no espírito que surge para o autor destas linhas a questão da colagem:

Porque, com efeito, aquilo que a colagem propõe é, sempre, de um modo ou de outro, basicamente:

- A organização da sublevação (senão mesmo, em termos ideais, a reinvenção cuidada da própria ideia de insurreição…) no sentido da organização de formas eficazes de luta contra a unidireccionalidade opressiva (e opressora!) da “comunicação” pós-moderna nas suas infindáveis ‘imanências’ e/ou modalidades—desde as que se prendem com a estupidez directamente injectada de forma contínua em todo o sistema pela televisão (forma, em geral, limite de “obscenidade intelectiva e inteleccional”: forma ideal, forma absoluta, modelar, de imbecilidade cultu(r)al “perfeita”!) até aos modos completamente disfuncionais como, secundariamente, a partir dessa experiência realmente transversal de estupidificação dourada e feliz de que a televisão é uma componente verdadeiramente fulcral, a fruição da própria Arte passou gradualmente a des/fazer-se de forma irremediável desde que a Modernidade cedeu definitivamente o passo à Pós-modernidade.

Ou seja: pega-se no texto ou na imagem impressos (alimento electivo elementar do “homo mediatucus tipo”) mas, desta feita, por um acto deliberado de revolta e resoluta rebelião, subverte-se completamente o sentido original da mensagem, pondo-a falar não apenas por nós como, também (e sobretudo!) connosco e com os outros—com todos quantos são ainda, hoje-por-hoje, capazes de se reverem nesse acto seminal de inteligência e lucidez que é a ironia.

É preciso, porém, dizer de uma forma muito clara que não se trata de “danificar por danificar”, de destruir por destruir: é essencial agregar nuclearmente à própria revolta um sentido pessoal definido, reflectido, premeditado de modo a gerar a ideal “mudança de estado” do «objecto» original no sentido da sua superação e, portanto, da construção a partir da sua “meticulosa, educada destruição” de uma nova—e desta vez, verdadeira!—consciência individual e colectiva da realidade.

É preciso que cada um deixe uma marca ou um sinal de inteligência e reflexão no—e sobre o—núcleo mesmo do “estrago” produzido.

É preciso que “estragar” seja, em si mesmo e em todos os casos, um acto (ou conjunto de actos) de afirmação de independência e de lúcida, vigilante, sensatez—assim como de provocação e questionamento ousado de tudo: de si e dos outros; de si e dos outros mas também (“last but not least”!...) daquilo por que estão, hoje-por-hoje, comummente “ligados” os indivíduos uns aos outros e os indivíduos às respectivas comum-idades.

É preciso que “colar” represente em tudo (o projecto de “disciplinada desordem e perturbação” senão mesmo de “cuidada e educada perversão” que se propõe consiste basicamente nisso!) um sinal de atenção e de esclarecida discordância; é preciso que as formas encontradas pelo “colleur” para dar corpo à ideal retaliação do Eu (originalmente condenado à passividade surjam claras aos olhos de todos; ou seja, é preciso chocar, é preciso escandalizar, é essencial provocar!

“Colar” é, também, de algum modo, ressuscitar a essência mesma do encanto e da pura magia adolescentes de ler: quando em crianças e adolescentes, com efeito, líamos o “nosso” De Amicis ou o nosso Collodi enchíamos a alma de maravilha e sortilégio inventando, tão literal quanto fascinadamente, rostos e mesmo sentidos às respectivas personagens—quando não (objectivo final verdadeiramente perfeito de uma igualmente perfeita leitura!) (re) inventando praticamente do nada as próprias personagens que esses e outros autores nos propunham de algum modo apenas em embrião.

Fazíamo-lo de um modo em tudo análogo àquele pelo qual esse fabuloso personagem de um não menos fabuloso e genial conto do russo Arkadi Avertchenko inventava histórias e destinos às tíbias e insulsas “personagens” de um mais do que morno (e existencialmente insípido) problema de álgebra…

“Colar” é, pois, pegar num qualquer rosto que o omnipotente e omnipresente poder económico-político vigente condenou a ter de se vender para impingir uma camisola ou um par de cuecas a um idiota qualquer, estupidamente convencido de que, ao usar qualquer um deles, fica miraculosamente convertido num Brad Pitt ou num Mel Gibson dos subúrbios; “colar”, neste sentido, dizia, é fazer dele, do rosto estupidamente belo (ou imbecilmente sublime…) do “manequim de carne e osso” original, desafiadoramente, o rosto de um verdadeiro Homem que sente e pensa mas, sobretudo, que tem vontade e sentimentos: fazer do “boneco” alienado (bela e santa—clássica—noção!) uma identidade reconhecível ou, no mínimo, não muito dificilmente adivinhável.

Fazer dele, pois, alguém que, desse modo, se torna subitamente livre e autónomo e que—tendo começado docilmente uma bem-comportada (e em tudo conformada…) “carreira” de homem-sanduíche moderno pelo acto (desgraçadamente “fundador”) de aceitar negociar-se a si próprio (ou à imagem deliberadamente deformada que fabricantes e compradores à uma fazem de si!) por meia dúzia de patacos em nome de umas ceroulas ou de um par de banalíssimas cuecas—acaba, declarando, num arroubo de inesperada audácia, a sua independência total do opressor, passando a constituir um desafio e, por conseguinte, uma ameaça para todo o sistema.
Desde logo através do seu… pinoqueano acto de existir não apenas à revelia do projecto original do respectivo criador como, sobretudo, contra o criador e contra o projecto a que ele antepõe agora um desígnio próprio ou, no mínimo, com a sua simples existência, a possibilidade literalmente revolucionária de um…

O que se inculca na colagem é, pois, numa palavra (não tenhamos receio de afirmá-lo!) uma autêntica embora inicialmente localizada e… “minúscula” “revolução cultu(r)al”, ou seja, o levantamento organizado, a rebelião firme e determinada do “proletariado visual”, da “classe operária publicitária e/ou plástica e estética” (do “printed proletariat” à nossa volta) num projecto consistente de autodeterminação ou mesmo (porque não?) de insubmissão e insubordinação generalizadas iniciada materialmente na revista “à la page”, associada à tesoura e ao tubo da cola…

De um cartoon avulso, estrategicamente “colado” ao “comercial” de um vestido ou (já nem me lembro!...) de um casacão até aos pés por cima de uma camisa de noite “com assinatura” eis que sai, com efeito, de súbito, um “afável” mas muito determinante e muito impositivo—muito… irrecusável—“Sr. Ambascile”… Ah, este Sr. Ambascile, Mukunka, de apelido—a propósito: repararam no que se assemelha, demasiado para não sê-lo, a uma saia, espreitando por sob o casacão amplo?...

Decididamente este misterioso homem-que-ri guarda um segredo qualquer que nem ao próprio “colleur” quis revelar!...

(Terá a “revolta” chegado já aqui, a uma espécie de ultra rebelião secundária e total, de uma insurreição levada virtualmente ao extremo, preparando-se sub-repticiamente debaixo do nariz inadvertido deste último mas agora também, expresso nesse secretismo e nessa reserva, contra ele?... Esta, uma outra questão—e bem curiosa, sem dúvida!…)

…O sr. Ambascile—lido à italiana “Ambaxile”: o Sr. Ambascile é filho ou neto de um diplomata italiano e de mãe etíope ou abexim…—com o seu chapéu tão singular “à Charlie Chan”, o seu truculento sorriso de gigante, a um tempo colossal e vulnerável e, muito em especial, uma vontade própria recém-nascida e ainda apenas esboçada mas já perfeitamente reconhecível; o Sr. Ambascile, dizia, uma vez surgido, não é já tão fácil de (tacitamente) sujeitar e submeter pelos seus “colonizadores mediáticos originais” como fácil havia sido para esses mesmos colonizadores submeterem e sujeitarem cada um dos bonecos/objectos pacientes e disciplinados de onde esse imprevisto Sr. Ambascile emergiu pela primeira vez pela mão sacrílega—subversiva!— do “colleur” que lhe “deu o ser”…

O sr. Ambascile mas, de igual modo, esse outro (eternamente melancólico, abatido, tristonho, sombrio) George— George (George quê? Ter-lhe-ão roubado, com a alegria, também o nome?...);

um George-apenas-George onde parecem (e parecem apenas?…) poder ler-se as mágoas dificilmente cicatrizáveis da opressão colonial insinuada, de forma ostensiva, na agressão da cor branca que lhe atravessa horizontalmente (como uma venda?) a parte superior do rosto para sempre desconhecido enquanto todo—como será verdadeiramente o rosto inteiro deste como o de tantos outros “Georges” impedidos pelo recuo da História de florescerem em pleno?...

—um George que vem acusar-nos (ou assombrar- nos?...) num silêncio verdadeiramente “de chumbo” com o seu meio rosto ofendido (ofendido e humilhado!) de meia pessoa, de individuo consistentemente amputado de metade de si (de ente mutilado do seu direito à totalidade e à integralidade enquanto ser humano) e que, como disse, vem com o seu silêncio de frágil animal ofendido levantar o dedo contra a “feira mediática” (a “feira cabisbaixa”, como diria O’Neill…) onde se prostitui a vender roupa para um público tão fútil e insensível quanto globalmente imbecilizado pelo próprio hábito de consumir aquilo que lhe “mandam”…

Vem o ‘nosso’ George apontar o dedo silencioso ao próprio (sem?) coração da… “Idade Mídia”—mas vem, sobretudo, apontá-lo individualmente a cada um daqueles que, vivendo com olhos e a (impúdica ausência de!) sensibilidade de gente frívola e desmiolada essa mesma “midievalidade”, são os cúmplices objectivos mas também efectivos da humilhação de tantos Georges por esse mundo fora…

Para sobreviver num mundo de brancos (e não é todo o mundo afinal, ainda hoje, de um modo ou de outro, um mundo de brancos?...) um negro como George tem, fatalmente, de aceitar “ser” também (mas apenas até onde lho permitam os… “brancos de direito”) um pouco branco—ainda que isso signifique “usar” um olhar (“simbolicamente”) pardo de nórdico “vendo por ele” as coisas que ele deixou, assim, de ter direito a ver e a organizar, a arrumar, por si mesmo.

Falo desses mas poderia, de igual modo, falar daquele não menos melancólico Jimbo a quem um espírito impiedoso (ou, pelo contrário, apiedado e ferozmente impelido à denúncia?...) “colou” uma simbólica boca vermelhíssima (propositadamente enferma?) que desfaz para sempre a unidade e a integridade visual mas, sobretudo, orgânica, total e interior da vítima.

…Ou daquele “conquistador” solitário, desembarcado num areal ermo e inquietamente despovoado (desembarcado ou abandonado nele por um qualquer capitão Bligh; um obscuro “conquistador” (?) cujo nome para sempre permanecerá, também esse, ignorado—e essa é, sem dúvida, outra das questões de fundo indissociáveis deste projecto de “colar para a insubordinação e para a revolta” mas, também, para a inteligência nas suas diversas formas—essa de perguntar, por exemplo, “Afinal, que sabemos nós da realidade?”

Que parte (que parte inteleccional e intelectiva) dela deve, por direito, pertencer-nos?

E onde se origina, afinal, o próprio direito ou os próprios direitos sobre as “coisas”—a propriedade como tal?...

Mas, regressando à (breve e necessariamente muito imperfeita, muito incompleta) “análise” do conteúdo imediato… possível do “caso visual” do “nosso”… “conquistador” solitário: virá ele realmente conquistar ou, pelo contrário, morrer só, banido, desterrado, com a sua fatiota improvável de cortesão desesperadamente absurdo nesta praia lunar onde a única companhia possível parece ser a do… mais extremo isolamento e da mais desgraçada solidão?

Olhar-nos-á ele com orgulho e desafio (puxa da espada para persuadir-nos de que não o domina qualquer receio ou, pelo contrário, a fim de pôr termo à vida, mal paremos de olhá-lo para prosseguirmos a nossa “ronda” até à imagem ou ao cromo seguintes?...)

Olhar-nos-á, pois, desse modo desafiador e provocante com o propósito de morrer combatendo ou, pelo contrário, com o atormentado desespero de quem sabe que o fim está próximo e nada pode ser feito para evitá-lo?...

E que dizer do “pormenor” irónico das quatro… “câmaras” (o olhar caracteristicamente cru e violador do colonizador?...) que seguem impiedosamente o nosso herói (qual obsceníssimo “Big Brother civilizacional e transtemporal”—terá o “colleur”, em algum recôndito do seu espírito, tido essa ideia singular de sugerir uma “régie” televisiva com os seus indecorosos múltiplos monitores de televisão “à Orwell”, vasculhando cruelmente o desespero,

sondando implacavelmente a angústia, farejando desapiedadamente a solidão e a morte que, numa das suas várias possíveis imanências e formas, se avizinha?... Mas… e sabemos nós que/se o rosto ampliado é, realmente, o do “conquistador” solitário?...

Como poderemos ter a certeza disso—e (outra questão—talvez…— marcante) pode essa “certeza” ser considerada, de algum modo, essencial do ponto-de-vista da nossa apropriação/abordagem da essência do “quadro”?

De qualquer “quadro”?

É, por exemplo, nosso… o ‘nosso’ próprio rosto?...

“Somos” nós (questão muito… sartreana, essa, sem dúvida…) esse rosto exterior e raras vezes por nós mesmos visto com que nos apresentamos ao mundo?

Perante ele?

Ou seja, dito de outro modo ainda: existe uma verdadeira continuidade (ou—e ainda assim possivelmente apenas hipotética—contiguidade) entre o “Homem” e a sua representação física enquanto (possível) globalidade, i.e., enquanto… objecto hipoteticamente total?

Tudo isto são questões cuja (re) formulação devemos, no limite, ao “nosso” legionário a quem devemos, então, ficar gratos pela possibilidade de tê-las formulado.

São questões que não estavam previstas nem “contidas” no mundo de onde provieram os materiais para a elaboração de dezenas destes “objectos idealmente desafiantes e questionantes” a que chamo “colagens”.

Estes “personagens” são autenticamente essenciais para o propósito (ou para o… programa) do “colleur”, de questionar e afrontar a “Idade Mídia” que o cerca—e oprime.

Que oprime a todos ou quase todos.

Ganhando vida, eles, os personagens nascidos do projecto original de retaliar sobre a violência unilateral da mensagem mediática em geral vêm trazer-nos, qual caixa de Pandora subitamente aberta, o gemido (senão mesmo, no limite, o grito—o uivo, como diria Ginsberg) das vítimas e dos oprimidos, em geral—esse som difuso mas cada vez mais audível e distinto que tão compreensivelmente inquieta o opressor que (ou quando) pela primeira vez vê rostos e corpos individualizados em lugar de não ver apenas uma massa informe de criaturas vagamente humanas (perceber-se-á agora melhor aquele “detalhe” da proliferação plástica, por exemplo, de “Jimbos”?...) destinadas a (sem o assombrarem com qualquer individualidade ou forma mesmo remota de existência pessoal) contribuírem colectivamente para o seu enriquecimento como para a sua tranquilidade, histórica, cultu(r)al—e politica .

O que eu gostaria de dizer, por fim, é que é possível fazer “Arte” com literalmente tudo (fazendo-a, de igual modo, contra tudo—começando o ‘projecto’ por nada mais do que um maço de revistas e jornais velhos.

Mais: que é possível fazer inteligência e “construir” pensamento («nada menos do que todo um pensamento», como diria, desta vez, o velho Unamuno) com esses mesmos jornais e revistas mas de modo a manter sempre o cano da espingarda… “midieval” (com toda a sua carga ou com todo o seu sarro de frivolidades e genericamente intolerável futilidade) virado completamente ao contrário—começando, desse modo, a re/construir dialecticamente Cultura onde não havia senão imbecilidade, pondo inteligência onde antes existia apenas cretinice e a mais desesperadamente bacoca das empáfias…

O nosso tempo é o tempo da recomposição ideal do “surrealismo crítico” contra a sua mais dissolvente degenerescência que é o (anti) espírito “teledisco”, a frívola “cultura” “clip”.

Não falamos, com efeito, aqui de “formas” e de arbitrárias infinitas re/combinações inteiramente avulsas destas mas da questão do “sentido”—de um sentido no fundo completamente novo para o próprio uso—para a apropriação ou para a… ocupação!—a fazer das formas que nos rodeiam e com as quais se pretende, no limite, que permaneçamos para sempre aprisionados e submetidos.

Utilizar a própria mediocridade para reflectir e criticar é, pois, antes de tudo o mais, como dizia no título, um acto de… colagem…
Carlos Machado Acabado
Montemor-o-Novo em quarta-feira, 12 de Dezembro de 2007

Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.

“A colagem é não só Arte como a inteligência e o entendimento da Arte por excelência”.

Porque o afirma o Autor? Porque, segundo ele, se trata da única forma de expressão artística em que o ponto-de-vista do observador (e nesse sentido, ele mesmo, observador…) se convertem em parte integrante, indissociável do próprio objecto homenageado: uma única realidade no momento angular do tributo ou da homenagem estética e cognitiva em geral.

No momento angular da crítica.

Do instante vertic(i)al do juízo.

Na colagem (dessa magnífica Hanna Höch ao absoluto Picasso) passou, devido justamente ao (excelente!) motivo em causa, (objectivo supremo de expressão e fruição!) a ser virtualmente impossível distinguir o ‘objecto’ do respectivo ‘sujeito’—e vice versa (“Transforma-se o amador” e por aí fora...).  

Por isso exactamente, pareceu ao Autor indispensável cunhar dois novos vocábulos a fim de referir cada uma dessas entidades (ele e o seu juízo comprometido: ‘engagé’ sobre as coisas) de modo a exprimir, com o maior rigor possível, os novos papéis que ambas essas entidades desempenham no contexto do acto, com a “invenção” da colagem, (finalmente) mágico—ou finalmente fusorde olhar.

Refiro-me aos termos “objeito” e “subjecto”: uma obra que se deixa lucidamente penetrar e invadir, desse modo ideal, pelo olhar apropriador e (na melhor das hipóteses) ‘inteligentemente apaixonado’ de alguém é, pode dizer-se, o “objeito” perfeito, ideal, desse olhar: a função ou a vocação naturais do mesmo. 

Já este, ao fazê-lo, se converte (levando consigo, no acto, o indivíduo que o suporta ou medeia) no “subjecto” ‘exacto e modelar da sua própria admiração e respeito’.

Uma colagem é, pois, no limite, é uma maneira exemplar, fácil (e quase perfeita) de (desapare)cer.

                                                                              Carlos Machado Acabado