CARLOS MACHADO ACABADO
EXCERTOS DE UMA ENTREVISTA IMAGINÁRIA AO JORNAL “O INEXISTENTE” DO AUTOR DE “LA JEUNE VILLE”, “TODOS SOMOS HAMLET” E “À LA RECHERCHE D’UN LANGAGE COMMUN” 

Para libertinos verdadeiramente
imor(t)ais—como o autor de
Comunidade”, “Diário Remendado”,
“O Cachecol do Artista” ou
“Crítica de Circunstância

INDEX

Parte I..
Parte II..
Parte III

Explicação prévia: quando era ainda muito novo, comprei, uma vez, num alfarrabista conhecido, um exemplar do “Paradoxo sobre o Actor” de Diderot (que por acaso pertencia ao Luís Pacheco—o livro, não o alfarrabista conhecido nem, claro, o Diderot).
Logo prometi a mim próprio que, um dia, ainda havia de falsificar uma entrevista completa comigo próprio, usando o modelo de um diálogo similarmente inexistente cuja índole (tão desempoeirada quanto emocionantemente apócrifa, tão francesamente—ou tãoséculoo-dezoitamente—amaneirada e  aparelhada) de imediato me encantou. Me encantou por isso mesmo: porque a ideia era gira mas, sobretudo, porque a patranha era realmente excelente e emocionante saber endrominar com aquela convicção e aquele brilho..

Pois, pela parte que me toca, acabou por ser hoje 

PERGUNTA: A sua ideia de “colar” ultrapassa substancialmente a ideia que usualmente muitos de nós fazem dessa forma de “intervenção plástica” ou “instalações lisas”, como julgo que prefere chamar ao que faz.

Para si, “colar” não é obviamente nem “simples” nem isento de repercussões e ecos cultu(r)ais, vivenciais, etc. de toda a espécie…  

RESPOSTA: Sem pretender ser demasiado pomposo, diria que é (também!) um modo de conhecer-me, uma forma (ou, talvez mais exactamente: um instrumento) de “Conhecimento” (aliás, “a word I rarely use without thinking”, como dizia “o outro”) num sentido muito amplo e genérico, portanto.

PERGUNTA: Algumas das interpretações que faz do quecola” ou “instala no plano” são, realmente, no mínimo, particularmente complexas, concederá

RESPOSTA: Aquilo que eu proponho é que se torne a fruição artística sempre, de forma ideal, algo tão problemático e tão difícil que fruir um objecto possa, ao mesmo tempo, ser sempre, em última instância, visto como algo que inclui forçosamente a “complexidade salvadora” do desconforto e (d)a própria dor.

Uma visão ascética e, no fundo, sacrificial, portanto que nos reconduz a um certo espírito contra-cultural ideal próximo da tragédia grega, por exemplo

Eu não disse que fruir um objecto deva ser algo que termine em dor e em desconforto. Não será, em tese, grave que assim aconteça em (razoável) parte, aliás, mas o que eu digo é que “não vale” mistificar nestas matérias.

Não vale mistificar demais—no  (talvez) essencial, em todo o caso 

Fruir um objecto (sobretudo, se se tratar de um objecto que se reivindica, de algum modo—mesmo modesto e particularmente discreto e impreciso—da Estética) tem de ser sempre, no limite, um reflexo ou um (vou começar a dizer palavrões, ham?... Umrevérbero funcionante”) da própria vida, isto é, do modo como funciona verdadeiramente a realidade.

Se nesta, a dor, a inquietação, a angústia configuram na vida dos indivíduos presenças autenticamente incontornáveis (e desgraçadamente sempre, de um modo ou de outro, determinantes) fruir (como dizer?) com verdadeira legitimidade não só existencial mas também ontológica, com uma legitimidade possivelmente essencial, uma obra de Arte, não pode, em caso algum, vir a ser, no limite, uma forma fácil de alienar-se e, por conseguinte, furtar-se à acção concreta da realidade como tal ou como “objecto total”, digamos assim.

Eu vejo a Arte (aquilo que chamamos “Arte”, nas suas possíveis, múltiplas, formas) sempre, em última instância, como algo de basicamente análogo ao que alguns anti-psiquiatras chamaram a “derrocada esquizofrénica” funcional ou funcionante—a sua indução, em todo o caso—isto  é, como um meio de soltar os demónios interiores de cada um (na colagem é—felizmente!...—muito difícil ‘distinguir’, no limite, os demónios do sujeito dos do objecto da respectiva fruição. Há uma espécie de solidariedade epistemológica e ôntica na  colagem que me excita e sempre me emociona, com efeito); um meio de soltar os demónios, dizia, é verdade, mas a fim de exorcizá-los de modo a permitir a reorganização (ou a sua “reorganicização contextuada” ou contextual) secundária ou terciária e por aí adiante, por parte de cada um dos indivíduos envolvidos no processo, de forma “tessitária”, na “máquina” a re/construir da sua própria identidade, se assim me posso exprimir.

Na “máquina a re/construir” da sua própria, permanenteidentitarizaçã”, se se pode dizer assim

PERGUNTAS: Não-raro, tenho-o, com efeito e como comecei, por outras palavras, por referir, visto e ouvido fazer o que chama “leiturações a posteriori” de alguns dos seus próprios trabalhos que, pela extrema complexidade (mais do que interpretativa ou mesmo meta-interpretativa: “meta/interpretacional”) se aproximam, diria eu, em muito da noção, por exemplo, barroca de “labirinto”, de dédalo

São, de facto, poderia dizer-se, verdadeiros “jardins barrocos conceptivos oulucubrativos”, “lucubracionais” (o que já configura, em si mesmo, uma espécie de singular redundância, aliás) mas, também (e, até, sobretudo!), a outro nível, verdadeiras “sondagens” ou “explorações”, tentativas, diligentes e, por vezes, impiedosas (quase ferozmente “uncompromising” ou “unrelenting”—que é um termo que, julgo saber, aprecia particularmente) do próprio subconsciente do autor

RESPOSTAS: Parte do processo de construir osobjectos comunicacionais e talvez estéticos” que (continuamente re?) faço passa, com efeito, centralmente por , admito.

Dilacerar-me, auto-infligir-me determinadamente dor (ou, pelo menos, não hesitar perante a premência ocasional ou até modal de fazê-lo) é, admito, se assim posso dizer: uma peça importante do processo global de “conhecer-me”, sem dúvida.

PERGUNTA: A tal “word” que “rarely use without thinking”, como disse

RESPOSTA: Essa mesma!

Sempre “prescrevi”, volto a dizer, a dificuldade, o difícil, como “remédio” obrigatório para a ignorância—para a ignorância num sentido muito seminal ou mesmo ontológico da ideia de ignorância.

No sentido último, “ultimate”, de agnosia ou agnose como “estação ontológica” do próprio ser, se assim posso dizer

Parte da minha uma herança judaico-cristã pessoal, com certeza

Tentei sempre, porém, à dificuldade, ajustá-la e integrá-la ajustada, por exemplo, à minha prática profissional docente, isto é, procurando sempre conferir-lhe expressão metodológica e epistemológica, cientifica ou cientiforme, em qualquer caso, sem dúvida.

PERGUNTA: Falando, porém, especificamente de colagem

RESPOSTA: Falando especificamente dela

CARLOS MACHADO ACABADO 
               Montemor-o-Novo em 22 de Dezembro de 2006

Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.

“A colagem é não só Arte como a inteligência e o entendimento da Arte por excelência”.

Porque o afirma o Autor? Porque, segundo ele, se trata da única forma de expressão artística em que o ponto-de-vista do observador (e nesse sentido, ele mesmo, observador…) se convertem em parte integrante, indissociável do próprio objecto homenageado: uma única realidade no momento angular do tributo ou da homenagem estética e cognitiva em geral.

No momento angular da crítica.

Do instante vertic(i)al do juízo.

Na colagem (dessa magnífica Hanna Höch ao absoluto Picasso) passou, devido justamente ao (excelente!) motivo em causa, (objectivo supremo de expressão e fruição!) a ser virtualmente impossível distinguir o ‘objecto’ do respectivo ‘sujeito’—e vice versa (“Transforma-se o amador” e por aí fora...).  

Por isso exactamente, pareceu ao Autor indispensável cunhar dois novos vocábulos a fim de referir cada uma dessas entidades (ele e o seu juízo comprometido: ‘engagé’ sobre as coisas) de modo a exprimir, com o maior rigor possível, os novos papéis que ambas essas entidades desempenham no contexto do acto, com a “invenção” da colagem, (finalmente) mágico—ou finalmente fusorde olhar.

Refiro-me aos termos “objeito” e “subjecto”: uma obra que se deixa lucidamente penetrar e invadir, desse modo ideal, pelo olhar apropriador e (na melhor das hipóteses) ‘inteligentemente apaixonado’ de alguém é, pode dizer-se, o “objeito” perfeito, ideal, desse olhar: a função ou a vocação naturais do mesmo. 

Já este, ao fazê-lo, se converte (levando consigo, no acto, o indivíduo que o suporta ou medeia) no “subjecto” ‘exacto e modelar da sua própria admiração e respeito’.

Uma colagem é, pois, no limite, é uma maneira exemplar, fácil (e quase perfeita) de (desapare)cer.

                                                                              Carlos Machado Acabado