Prêmio ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), 2008, como melhor veículo de comunicação de cultura do país |
O livro invisível de C. Ronald |
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Tendo começado a publicar sua obra nos anos 70 do século passado, é possível que C. Ronald ainda não tenha encontrado o seu público leitor. E não tanto porque essa obra, difícil e reservada em muitos sentidos, pouco acolhedora aos primeiros contatos, mas ao mesmo tempo portadora de uma luminosidade estranha que se oferece de modo aparentemente generoso àqueles que se aventuram a um convívio mais íntimo, esteja ela mesma fechada ao contato. Ocorre que esse modo reservado de ser aponta para alguma instância que nela surge como fundamental, devendo-se admitir que a reserva é ali, também, uma convocação. Não queremos conjeturar acerca daquilo que nos escapa. No espaço indeterminado que se abre à leitura e à interpretação, é necessário que não atribuamos às nossas suspeitas e aos nossos conceitos um caráter de generalidade que ameace invadir todos os recantos. Além disso, por si mesma (caso possamos conceber um si mesmo da obra literária que sirva de base para que as nossas afirmações tomem o seu impulso inicial, qualquer que seja ele), a obra parece proibir ou denunciar a generalidade. Aberta, segundo pensamos, no que tem de generosa e franqueável à interpretação, ela se fecha em seguida no gesto paradoxal de se abrir e se realizar. É obra da claridade, das palavras que empregamos para nomear as coisas do dia, deve-se dizer. Mas é também o recuo e a ocultação, o dobrar-se sobre si própria num movimento impenetrável – movimento no qual, para nos aproximarmos dela, gostaríamos no entanto de estabelecer o nosso ponto de partida: não a despedida que os cães atacam em pesados bifes sabe Deus de onde vem a mulher e como a vejo subindo a correnteza do espelho a arte de ser carne à medida que mordemos ou sermos mordidos aquela falta onde o espaço de antemão diz o que é compreendendo tudo do homem e sendo anônimo de si mesmo (RONALD, 1999, p. 49) Ainda assim, pode ser que, postulando esse movimento, não nos desprendamos da generalidade. Em princípio, seria necessário interrogá-lo de perto, sabendo de antemão que o que quer que seja que possamos descobrir nele, para além das constatações mais óbvias e imediatas, está contaminado, ou é uma sua projeção no espaço do dia, pela obscuridade da reserva. Entregando-se, a obra fala numa linguagem que não pode ser outra que a linguagem do dia, aberta totalmente para si mesma e para tudo o que a linguagem é ou pode vir a ser no plano da luz. Porém, sem transição e sem aviso, essa linguagem se converte em recusa, estranheza, silêncio incorporado à substância da fala, a tal ponto que, sem dispersar a fala, uma tensão instável se estabelece: “Retorcido no ar eletronicamente resistente como animal vulgar / o gato e seu susto indo do focinho ao rabo / com os pelos em pé quando os cães significam / fatalidade” (RONALD, 1999, p. 60). O silêncio diz alguma coisa, proclama diurnamente o domínio e a completude de uma realidade que não é outra que a realidade do dia. Ao mesmo tempo, a fala tende a silenciar, calando em si não um além de si que ela ajudasse a iluminar e que fosse o seu dever enunciar (como na fala de todos os dias, que parece ser a cada instante ultrapassada por aquilo que tem a comunicar), mas o próprio dom de dizer, que nessa reserva se torna potência de enunciar e de ocultar o que enuncia: “São impróprios os venenos, eles só fixam / a injustiça de ontem. Melhor um cordão de sapato / amarrando o hábito na epopeia rudimentar. / Permito isso na cabeça como se derramasse café” (RONALD, 1995, p. 32). Antes de avançarmos, deveríamos perguntar: que pode a crítica (ou o que ela quer) diante disso que aparentemente a exclui ou a impossibilita, tornando-se tão difícil que nos põe na iminência de um paradoxo? Se a reserva é real, e se a poesia de C. Ronald a encerra efetivamente em sua intimidade – a ponto de convertê-la num verdadeiro modo de ser –, não está a crítica, diante dela, condenada a uma tentativa ociosa ou mesmo absurda? Não está a se impor como tarefa tornar claro ou trazer para o dia aquilo que desde sempre mergulha raízes na noite e no silêncio e que, portanto, só pode existir na medida em que se mantiver a reserva? Tais perguntas pode ser que não estejam bem dimensionadas. O fato de que a crítica se debruce sobre uma obra que tem na obscuridade um dos seus pontos de enraizamento não implica que se busque nesse gesto (de voltar-se para o obscuro) um esclarecimento ou uma dissipação (que seria sempre ilusória) da obscuridade. Não implica, igualmente, que se queira converter num discurso da claridade o que aparece como próprio da noite – até porque ali o elemento diurno se entrelaça ao elemento noturno –, produzindo uma fala híbrida que tenderia a aplainar o terreno, a aparar as arestas e a contentar as consciências. Implica, antes, que, ao deparar-se com esse outro sem proximidade, o discurso da crítica aprende com ele a reconhecer os seus limites, propondo-se a um convívio no qual a estranheza, sem jamais se converter em familiaridade, deve permanecer estranheza até o fim. Ou, por outros termos, é a experiência desse outro que se incorpora na obra, tornando-se nela uma presença e uma afirmação que não se deixa reduzir. Sob tal perspectiva, a poesia de C. Ronald não poderia ser convertida numa outra coisa (um discurso de crítica), nem esclarecida ou decifrada pelo recurso à paráfrase (se é que qualquer poesia jamais o pôde). Por suas características, ela convoca o discurso da crítica à própria experiência do recuo e da reserva – recuo que é também a generosidade da luz que jorra –, abrindo-se ao encontro sem deixar, em nenhum momento, de dizer o que diz e o que mostra. Com efeito, muito mais do que tentar explicá-la ou justificá-la, a crítica pode, diante da obra, apenas interrogá-la, mesmo que a interrogação tenha de se desdobrar e de se aprofundar. Ao fazermos isso, descobriremos cedo que o esforço de permanecer ao pé do que a obra diz não tem sentido a não ser na medida em que esse sentido, mais do que se duplicar no discurso da crítica, quer, antes, iluminar-se nele ou fazer jorrar sobre ele a sua luz. Por um momento, pode ser então que se anuncie no espaço da interpretação a promessa de um sentido estável, reconhecível, ou que nele assome como garantia de estabilidade (tal como ocorre em certas poéticas que se valem da tradição para forçar um caminho em direção à voz). Mas logo perceberemos que tal sentido – pensemos, para esse efeito, em certos poemas de Dias da terra ou de A cadeira de Édipo – convive, não só no corpo da obra, em sua maneira de se constituir, mas também em cada poema e mesmo em cada verso, com as manifestações de um não-sentido original; isto é, que o dizer está ali mesclado a um não-dizer primordial, do qual extrai as suas forças e o seu sortilégio: Sentimos a vida juntos. E se a noite continua não é por estar presa ao escuro quando na realidade só há o silêncio de quem dorme. Uma mão côncava, ansiosa do espírito que não pega. Uma claridade sem presságio depois do sentido humano estar oculto numa morte que não se parece com a nossa. Por isso escrevo, apelo pela dignidade dos outros em conversão capaz de vida onde o futuro faltou. [...] (RONALD, 1993, p. 32) Não queremos sugerir que esse não-dizer se origine de uma qualquer insuficiência do dizer ou que seja reflexo dessa insuficiência. Supomos, em vez disso, que na poesia de C. Ronald o não-dizer, entrelaçado ao dizer, contém a sua própria origem, a qual se enraíza na reserva e no silêncio. Também não significa que o que é recuo e reserva procure no dizer uma espécie de correção ou de suporte, como se, carente de ser, precisasse de um apoio qualquer para se manifestar. Pensamos antes que, ao incorporar tanto o dizer quanto o não-dizer, é o corpo do próprio poema que se põe em questão: “A perda é um palco virado. Aconselho a cópia / da paisagem onde o sol insiste em revelar-nos o dia / mais pela sombra que as coisas deixam” (RONALD, 1993, p. 59). E esse pôr em questão não é, por sua vez, um modo de solucionar os impasses ou de dirimir as tensões. É um modo de ser próprio do poema que C. Ronald parece ter perseguido desde o seu primeiro livro, modo cuja maleabilidade, cuja flexibilidade quase assustadora não se contém nem pela forma do poema (impresso sobre a página branca), nem pela sucessão algo vertiginosa de poemas em livros de estrutura misteriosa e de feição impenetrável. É um modo de ser que o desdobramento incessante de imagens, as quais parecem nunca ter encontrado um ponto de repouso – e neste aspecto se pode dizer que a poesia de Ronald representa um formidável ajuste de contas com os recursos da retórica tradicional –, anuncia e determina em sua origem, sem no entanto impor uma forma, a não ser aquela da sua sucessão e do seu intrincado e sempre obscuro entrelaçamento: Crescem os passos no corredor e a casa desperta. Mas não desse lado sem infância sustentado ainda por pedras e musgo, aqui onde uma realidade curva os dons da terra entre pequenos insetos. A noite sempre tem outras criaturas para todo o sangue inerte. Precisaram vestir o homem maldito no esquecimento e não fizeram mais que um adulto nesse retorno de trânsito provisório para os mortos. Depois passa sem medida pela substância de um amor que houve na profundidade, pois o que não apareceu continua apenas a pertencer ao milagre ou à ruína dos criadores. (RONALD, 1993, p. 69) Mas, se mencionamos as imagens, que gênero de imagens são essas ou, se o são realmente, de que maneira podemos falar delas ou delimitá-las, sem invadirmos aqueles recessos de obscuridade e silêncio cujo acesso já no princípio nos foi interditado? Provavelmente, a poesia de C. Ronald, além de ser uma poesia cujo contato há de gerar no leitor, à primeira vista, um forte sentimento de rarefação, é também uma poesia destituída de mitos. E dizemos que é destituída de mitos no sentido de que suas imagens, ao contrário do que costuma acontecer com outras poéticas mais costumeiras, não tendem a se coagular em torno de núcleos definidos de significação. Ora, isso não quer dizer que não se possa procurar nela, sob o movimento fluvial das imagens, qualquer coisa que venha a lembrar esses núcleos. Certa ambiência de significados haverá de estar lá, de algum modo, como se pode perceber, por exemplo, em alguns poemas de Dias da terra, principalmente naqueles que levam títulos. Mas tais ocasiões não constituem maioria. Se podemos pensar que a morte, ou as origens, ou a presença da terra, do animal e dos espelhos tendem a se insinuar aqui e ali como possibilidades de concentração do sentido, essa concentração é instável, não se podendo creditar a ela nada que nos permita falar de coisas como um núcleo metafórico central ou um jogo de recorrências que, marcando-se à superfície do dizer, nos permitisse reconstituir um mapa de sentidos ressurgentes ou uma mitologia central, pelo menos no âmbito dessas imagens específicas. Na quarta capa de A cadeira de Édipo, há uma observação de Vilson Nascimento (datada de 1979), que afirma – ideia com a qual é preciso concordar, mas que é preciso situar com maior precisão – não haver “tema ou argumento em seus poemas”: Tudo emerge de uma cósmica consciência. Se atentarmos, sem receio, sem censura e preconceitos, veremos que através de seus poemas (colocados como verdadeiras sentenças ou aforismos poéticos), podemos atingir toda a capacidade de voo e alcance do espírito humano. (in RONALD, 1993, quarta capa) Como então nos desfaremos de nossos receios, preconceitos e censuras, se são eles mesmos que nos comandam e nos permitem, bem ou mal, estabelecer, sem o risco de uma queda mais profunda no não-sentido, nossos primeiros contatos com o que a poesia nos diz? Certamente, não se trata de afirmar que sem receios, preconceitos ou censuras sejamos incapazes de nos aproximarmos das obras literárias. Trata-se, talvez, de reconhecer que o espírito, qualquer que seja a amplitude do seu voo e a altura das suas aspirações, precisa estar contido nessa amplitude: que tal amplitude é o seu limite. Mas tem sido uma das aspirações da modernidade mostrar que a poesia não existe apenas para servir de espelho ou campo de provas do espírito. Mesmo quando se presta a essa tarefa (e por que não se prestaria?), ela mantém uma reserva, um distanciamento – aquele distanciamento que não lhe permite ser inteiramente espírito ou que não permite que o espírito a circunscreva totalmente. Conservando-se frente ao espírito numa tensão e numa frontalidade que ao mesmo tempo lhe possibilita – ao espírito – estender-se em todas as direções ou atingir, como pretende o crítico, o seu máximo voo, ela é também aquilo cujos limites o espírito não pode alcançar e que, talvez por isso, torna possível a sua expansão. Quanto a essa relação com o espírito, a poesia de C. Ronald parece surgir da consciência da frontalidade; ou, melhor dizendo, parece abraçá-la como o seu momento de origem e, sem fazer dela um tema ou um pretexto, incorporá-la no coração da sua própria dinâmica, com todos os possíveis riscos e dilacerações envolvidos. O movimento de imagens a que se entrega seria, assim, apenas uma prova dessa aspiração exorbitante, sem deixar de ser também, paradoxalmente, aquilo que possibilita convertê-la no gesto que dá origem a uma obra: Olá, cordeiro! Antecipa as vogas dos lobos com teus chifres bocejantes e lã embaraçada, pois muitas cabeças ocas arrastam medalhas de esterco. Teu balido sarcástico sem a medida do pasto aposta na impaciência.
Ordenaria aos pastores o uso constante de camisas-de-força: invólucro habitual da contradição. O caos se fecha. Pálpebras tornam-se herdeiras da ordenha com o leite esticado na ausência.
Refluxo de riquíssimos fantasmas após o lucro. É isso que os condena. Fixação da miséria com mordaças de drogas em crianças de inocência morta torna a Pátria estranha, igual a um cartão pega-moscas. (RONALD, 1995, p. 25) Embora não nos pareça de todo impossível, seria pelo menos inadequada, por desrespeitar ou ignorar essa relação, a tentativa de atribuir um conteúdo preciso às suas imagens, tratando-as como se fossem metáforas, por mais obscuras e difíceis. Nesse aspecto, a poesia pode comportar-se de maneira instável. Não estamos falando apenas da possibilidade de perceber no poema a presença de um sentido confiável qualquer, que favoreça a construção das paráfrases que a crítica costuma às vezes confundir com o trabalho da interpretação (o que não quer dizer que a interpretação não possa incorporar a paráfrase como um de seus recursos). Mas é de notar que, se não raro um sentido parafraseável ameaça vir à tona ou nos dá o poema como um todo aparentemente delimitado em si ou equilibrado sobre uma base de significações que até certo ponto nos faria pensar em algo como uma linguagem figurada, detentora de suas próprias regras e de seus símbolos, noutras ocasiões é uma espécie de afundamento que se verifica, mergulhando a possibilidade de sentido numa zona de obscuridade que ameaça fechar-se sobre si própria. Se a poesia dispensou a retórica, o sentido não poderia ser, para Ronald, senão um problema a se colocar a cada vez que a linguagem se põe a caminho: “um calor execrável neste 2002 de março / não é com gelo que deve arrefecer / nem com a mão cheia d’água a quem resiste / ou submergir nas ondas debochadas do mar” (RONALD, 2003, p. 86), mas esse pôr-se a caminho não é de modo algum capturar e ossificar o sentido ou convertê-lo numa limitação. E não é que a linguagem não possa retornar a ele ou valer-se dele conforme o exijam as circunstâncias da enunciação. Acontece, contudo, que, entregue a um movimento livre ou engajada na aventura de uma totalidade que não se deixa iludir com as promessas do momento ou do repouso no finito e no estável, não é a linguagem que procura o sentido, que o força a aparecer, como se tentasse amoldar-se a ele. Pelo contrário, o próprio sentido acorrerá à linguagem, convertido em pergunta e dilaceração, a tal extremo que, vivendo dessa ambiguidade, também o não-sentido se incorporará ao gesto, num movimento que sempre recomeça a partir de si mesmo: lembras o horário que aproxima um quarto de outro e determina os hóspedes pelas chaves se eles amam todo o lugar da beleza se aquecerá mas alguém no escuro faz de uma pessoa uma lacuna também ao acariciar pois a dúvida passa da cama para a alegria do lado sem que haja trabalho no quarto nada oficial para o desequilíbrio deixar em delírio o bicho que pegaste e não devia ali estar (RONALD, 2003, p. 43) Se há uma injunção de pergunta – que vem da linguagem e retorna a ela, ultrapassando-a –, é possível dizer que a injunção se alimenta de seus próprios começos. Desse modo é que, avançando sem cessar em direção àquilo que o aprofunda, cada novo estágio alcançado (se a palavra estágio não trouxer para a reflexão um significado intruso que conviria evitar) é somente a possibilidade de um novo começo, o passo que fundamenta o passo seguinte. Livros inteiros, como A razão do nada e Os sempre – que compartilham entre si certos procedimentos formais que poderíamos anotar, tais como os versos distribuídos irregularmente na página ou os fragmentos numerados e sem títulos, procedimentos que vêm se incorporando mais recentemente à poesia do autor –, assumem o aspecto de serem um único poema distribuído ao longo de muitas páginas e dividido em mil fragmentos que nunca param de se mover. A ausência de pontuação, a numeração que substitui os títulos e impõe uma ordem difusa e, no entanto, necessária, o livre fluxo das imagens, tudo se entrelaça para compor um todo cujas dimensões estão em aberto, todo que, devido àquilo que chamamos de abertura, se move numa direção ignorada, numa procura sem direção. Mas o que é mover-se em livros cuja estrutura se mostra assim tão difusa? Como se o dizer de agora aspirasse incansavelmente ao dizer de depois, as imagens em que se incorpora sucedem-se não como os fragmentos de um mosaico, determinando padrões que um olhar distanciado poderia perceber, mas como as etapas ou as instâncias de um fluxo poderoso cujo destino não se encontra em ponto nenhum: “a calma está meio aberta na janelinha do cuco / onde passa a brisa adulterada / o canto e as horas vãs e ele / abre o bico próprio das asas” (RONALD, 2001, p. 127). Pode-se interrogar por fora esse fluxo, inquirindo-o acerca daquilo a que ele conduz – um fora de si mesmo para o qual ele tentaria apontar? Ou é dentro dele que se deve perseverar, na proximidade dessa zona de irradiação e dessa exigência que é dispersão e encontro, procura sem objeto e certeza daquilo que se procura? Ali o fluxo se mantém, como se nada pudesse ser feito fora dela – dessa zona de irradiação –, ao mesmo tempo em que ela, tudo realizando por dentro, torna real também a exterioridade onde não se pode habitar: a História do esquecimento jamais existiu enrolada e jogada em local de coisas que nascem de problemas ou de simples comércio agora nos jornais o vermelho apagou-se nós seguimos o rastro das manchetes reproduzidas com a mesma caligrafia da noite pois em algum lugar da vida ainda é cedo
e ela a inconsequente rainha do subúrbio com cara de mulher que já teve espírito na ponta da fronha torcida mil vezes escuta (RONALD, 2001, p. 69) Detenhamo-nos por um momento nessa dialética. Um livro como As origens poderia trazer-nos à mente, a um primeiro contato, certos procedimentos da vanguarda europeia de início do século XX, relacionados à escrita automática e a essa espécie de partida que a linguagem da arte jogou consigo mesma na poesia dadaísta, procurando atingir um grau de estranheza e de distanciamento em relação a si cujo limite tangencia às vezes o silêncio e o absurdo: “O que tenhas sido a diferença na medida em que / completas a vontade em tentativa falsa ou tu sobras / do que não foi feito” (RONALD, 1971, p. 219). Num outro momento, porém, perceberemos que a estranheza e a arbitrariedade de tais lances nada têm de gratuitas e que, muito mais do que a serviço de um jogo, estão empenhadas numa dinâmica mais profunda da linguagem, dinâmica misteriosa e que será quase indizível (se a olharmos por fora), a não ser que a própria linguagem a incorpore em si e, por sua vez, a dê a ver na claridade: “A vespa que encontrou seu cadáver / é bem mais antiga que nós / Ferida ela realiza um milagre” (RONALD, 1971, p. 135). Mesmo o verbo incorporar se afigura inadequado, uma vez que sugere a circunstância de uma exterioridade, de uma anterioridade qualquer do sentido (ou do que quer que seja que se anuncie neste ponto) em relação ao movimento da linguagem, a qual o colocaria a seu serviço. Ora, bem antes que se colocar a serviço de uma anterioridade, de um sentido pré-constituído a que se deveria sujeitar e obedecer, a linguagem parece entregue à sua própria sorte, vivendo de uma vida própria que só podemos reconhecer e na qual só interferiremos como estranhos: Não se confessam os astros na mudança? O homem fere de morte os seus anjos multiplica os pães no espaço
E no entanto elas se apresentam aos amantes da terra entre visões entre arbustos arrancados num lugar suscetível de larvas elas nascem
A obrigação da espécie as aves que se põem em luta pela respiração (RONALD, 1971, p. 133) Mas que fluxo é esse ou que força é essa que impele a linguagem a esse extremo e que a obriga a se dilacerar sobre si mesma, chocando-se contra a base que lhe serve de apoio (o dizer), ou que a deixa, enfim, atravessada entre a claridade do dia e a obscuridade da noite? Talvez só possamos concebê-lo por aproximação. Lá onde o fulgor se instaurou, onde a impossibilidade se converteu em realização e a possibilidade se manifestou como oclusão e desvio, se entrevê qualquer coisa de um fracasso, de uma tentativa de familiaridade com o paradoxo que faz suspeitar que, no final, tudo – toda a realidade e todo o esforço do dizer – sucumbiu na sombra da indistinção. A linguagem fracassa na medida em que seu esforço incorpora o não-dito, o silêncio que subjaz à claridade do dizer e também da ideia de que se tenha alguma coisa a dizer. Fracassar constituiria o limite e a eventualidade final desse esforço, seu ponto máximo de curvatura, levando-nos a perguntar se a poesia não seria apenas um engodo, uma miragem brilhante, com a qual nos satisfazemos na ilusão de que, ao menos assim, compensamos as angústias inerentes ao nosso esforço que se frustra. É possível que nos contentemos com isso? Neste ponto, uma digressão se faz necessária, para estabelecermos algumas distinções. Num ensaio sobre Baudelaire, Maurice Blanchot (1997, p. 132) observou que a existência desse poeta, atravessada pelo fracasso ou estendida entre o fracasso (uma “existência fracassada”, na expressão de Blanchot) e a plena realização do poético, faz pensar numa espécie de propósito, de premeditação “que a levou a não ser realmente livre nem realmente revoltada”; mas que, no fracasso, nessa impossibilidade de um dizer que completasse um círculo em torno da vida, também levou Baudelaire “a um dos maiores movimentos de libertação poética do mundo”; ou, como observa Blanchot, “como se ali onde o homem fraqueja a literatura tomasse o seu impulso, como se ali onde a existência se torna temerosa a poesia se tornasse intrépida”. Essa possibilidade de encontrar sucesso no próprio seio do fracasso conduz então a supor que, no caso de Baudelaire (e de tantos outros escritores da modernidade), seu fracasso é o fracasso “de um homem que teve a revelação da liberdade e foi aterrorizado por essa liberdade” (BLANCHOT, 1997, p. 132). E a pergunta seria: que liberdade é essa que, ligada ao fracasso, corre o risco de fracassar com ele, mesmo que o ultrapasse na queda? Para Blanchot, a questão se inflete diretamente sobre as relações entre vida e poesia, “como se a poesia precisasse faltar e faltar-se a si própria” ou como se ela só fosse pura e profunda em razão de seu próprio defeito, que ela porta em si como o vazio que a aprofunda, a purifica e sempre a impede de ser, salva de ser, e por essa razão a irrealiza e, irrealizando-a, torna-a ao mesmo tempo possível e impossível, possível porque ela ainda não é, se ela se realiza a partir do que a faz fracassar, e impossível porque não é nem capaz da ruína completa, que lhe daria a base da sua realidade. (BLANCHOT, 1997, p. 133-134) Segundo Blanchot, na trajetória de Baudelaire, a palavra poesia tem um sentido e indica “uma experiência vivida pela existência e pela linguagem” (p. 137). Tal experiência tende a “criar o sentido de todas as coisas juntas, de maneira que, a partir desse sentido, cada coisa é mudada, aparece tal como é, em sua realidade própria e na realidade do conjunto” (p. 137). Vê-se, pois, que a poesia é uma relação do poeta com a totalidade, relação problemática e ambígua, semelhante, como o disse Baudelaire a propósito de Delacroix, à experiência de expansão e aprofundamento dos sentidos propiciada pelo ópio. Esse aspecto leva Blanchot a comentar que a poesia e a arte querem testemunhar: “[...] é a natureza inteira que é transformada, e por essa razão, nos interessa, nos importa como não sendo mais natureza, mas natureza superada, realizada em sua superação” (p. 137-138, grifos do original). Não há como seguir, num curto espaço, todo o trajeto do pensamento de Blanchot a esse respeito. Para o interesse do presente estudo, bastará dizer que, se a experiência conduz ao supernaturalismo, palavra que, segundo o crítico francês, costuma ser repetida de qualquer maneira, é porque não se visa a “uma região acima do real, menos ainda a um mundo verdadeiro, diferente do mundo onde os homens existem”, mas “trata do real em seu inteiro, todo o mundo, quer dizer, a possibilidade de as coisas serem apresentadas umas com as outras e cada qual em sua existência total” (p. 138, grifo do original). E essa dialética desembocará numa relação difícil com o finito, uma vez que a obra, qualquer que seja o seu sentido, é finita e exige um acabamento, o qual permite ao artista afastar-se dela, bem como a torna obra de arte no mundo e não apenas trabalho infinito do artista no plano do indeterminado. Mas esse ponto – o ponto de acabamento – nunca está dado de antemão na experiência. O artista não sabe como e onde irá encontrá-lo ou sequer se irá encontrá-lo, e assim se produz o embate que dá origem à obra e ao artista como tais. Nas palavras de Blanchot, o movimento terá, para o artista e para a experiência da arte em geral, uma ressonância trágica: Assim, o movimento de tensão sem fim para uma totalidade sempre inacabada aparece como um esforço trágico, e a seguir também como a benevolência da inspiração, a providência do sono. E o infinito no finito não é certamente algo fácil, mas se manter juntos esses dois movimentos, compô-los, realizá-los um pelo outro supõe um grande esforço, a obra de arte encontra aí os recursos mais preciosos, e vemos no final que o inesperado, longe de se opor à espera do ritmo, só é possível nessa espera, que o vago se põe de acordo com a palavra mais exata, como a obscuridade do sonho, para se expressar, encontra o que precisa na transparência da linguagem, de maneira que se torna natural para Baudelaire elogiar a poesia de Edgar Poe nestes termos: “É algo profundo, reverberante como o sonho, algo misterioso e perfeito como o cristal”. (BLANCHOT, 1997, p. 139-140, grifo do original) Se quisermos retornar à poesia de C. Ronald, podemos dizer que o gênero de fracasso em que ela incorre (fracasso que é também a sua vitória, admitamos) tem uma implicação semelhante ao que Blanchot discerne em relação a Baudelaire. Porém o fracasso aqui diz respeito não tanto à aspiração exorbitante por uma totalidade impossível, conforme o pensamento de Blanchot, quanto ao modo de aproximação que a linguagem experimenta ao se orientar para a infinitude. Ou, mais precisamente, o que se tem na poesia de Ronald é a experiência da linguagem em estado de demanda, isto é, desdobrando-se a partir de si própria não em todas as direções possíveis (que instaurariam a desordem e o caos no universo das palavras), mas na única direção possível, aquela que, somente ela, aponta para a totalidade da experiência ou para a experiência totalizada. Isso pode parecer duplamente obscuro (e provavelmente o será), mas não deixaremos de supor que, se o jogo das imagens não é um jogo gratuito com o acaso, e se o movimento que as impulsiona não é um movimento arbitrário de escolhas (embora contenha esse arbitrário), e sim o movimento da linguagem quando se desdobra a partir de si mesma, então essa experiência é vivida no interior da linguagem. E o que ela diz sobre a totalidade não é a totalidade compreendida como um acúmulo indiscriminado de objetos, de pensamentos e de sensações que se sucedem livremente (à maneira de um fluxo de consciência ocasional), mas a única experiência possível, vivida a partir da única linguagem possível, que é aquela em que o poema se diz e que o torna obra de arte à luz do dia. Assim, se os primeiros poemas de Ronald podem dar a impressão de que são dominados pelo fascínio do arbitrário e do indeterminado, há que admitir que em todos os livros seguintes um certo rigor se imporá – rigor que nada tem a ver com o cumprimento de uma exigência externa ou com uma imposição de ordem que antecede a experiência do escrever, mas que vem de uma injunção que lhe é interior e que o constitui na sua intimidade. Se, conforme quis Blanchot, ainda falando de Baudelaire, a totalidade é incorporada na própria finitude da palavra, na noite de uma impotência que toma a aparência do trágico, na poesia de Ronald o trágico se manifestará na tensão que se estabelece entre dizer e não-dizer, entre a claridade do dito e a obscuridade que o permeia. Este é, a nosso ver, o ponto da invisibilidade, de um desaparecimento profundo que subjaz a todos os poemas e a todos os livros de Ronald, fazendo deles um único livro de experiência poética total, a cujas páginas só podemos aceder mediante a leitura do livro concreto, contingente, objeto frágil, de uma fragilidade decepcionante, mas ao mesmo tempo dotado de uma força e de uma presença que transcendem quaisquer limitações: A coisa repetida: pássaros e lebres suportam o gosto, mas por dentro incandesce a atitude do arrogante. E nosso descrédito humano prende-se a todos. Será engano e também a permanência de costumes e sílabas no outro lado do enxame.
Agora o sonho se fará, não pela destreza da amargura, mas pelo esperma amordaçado. Supões e experimentas aquele anúncio da beleza sem a ajuda da matéria. Morto o poeta a sobriedade destacará recursos do sudário para regular o céu de um extremo a outro. (RONALD, 1978, p.108) Pode ser que, por essas e outras razões, os livros de C. Ronald permaneçam ainda por muito tempo reservados, misteriosos e pouco acessíveis a um público amplo, mas a reserva e o mistério problemático, desorientador, em que incidem talvez provenham daquele outro mistério e daquela outra reserva mais essenciais. O escândalo do sucesso e da publicidade – a que a obra eventualmente, reconheçamos ou não, há de estar destinada – pareceria inadequado a essa obra, apenas multiplicando os mal-entendidos. E não é à toa que no prefácio a um de seus últimos livros o autor fez a seguinte declaração: Nunca adquiri fama literária (no máximo, prestígio), por jamais mover uma palha para adquiri-la. Sempre fui de opinião que a poesia, ela mesma, deveria arcar com tal ônus, pois sendo verdadeira e boa seria reconhecida com o passar do tempo, mesmo que esse tempo já não fosse mais meu (constando apenas numa lápide com musgo). Entretanto, jamais deixei de acreditar na posteridade da minha obra porque nela empenhei de maneira profunda e total a minha vida e a cotejei com as existentes antes e também com as que faziam estardalhaço no meu presente. (RONALD, 2006, p. 9) São palavras que, por mais que as julguemos sábias e por mais que nos congratulemos com o desprendimento que inspiram, podem nos conduzir ao equívoco. O sucesso ou a ideia da fama é apenas um dado. O que está por trás, o silêncio do outro lado, o desentendimento opaco e errante, é o que se escamoteia na parte visível, sendo por isso aquilo a que não se pode dar voz, que não se pode trazer à luz e muito menos tornar objeto de uma admiração pública, bem resolvida e universal, conforme se exige da arte em todas as épocas. Como citaremos esse autor nas epígrafes dos livros ou como o levaremos aos manuais de literatura, sem que antes tomemos a precaução de aplicar-lhe rótulos que pouco ou nada elucidam a seu respeito? Ou como demonstraremos diante dele um saber efetivo, de técnicos e especialistas em questões literárias, se tal saber nada mais é do que o testemunho da nossa indigência e da nossa ignorância, e se a familiaridade que pretendemos é apenas uma outra faceta da errância, da impossibilidade plena de lhe sermos familiares, com a qual não nos conformamos e que, talvez por isso, mantém acesa a esperança de uma aproximação? Não é a resposta a essas perguntas – caso seja possível uma resposta – ou a tentativa de responder a elas que nos descorçoa. É a possibilidade de formulá-las, o fato de que sejam possíveis, que nos espanta e, escavando o abismo do tempo e da noite à nossa frente, nos deixa estarrecidos e fascinados. |
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BIBLIOGRAFIA BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. RONALD, C. Ocasional glup. São Paulo: Scortecci, 1999. ___. Cuidados do acaso. São Paulo: Scortecci, 1995. ___. A cadeira de Édipo. São Paulo: Scortecci, 1993. ___. Os sempre. Florianópolis: Bernúncia, 2003. ___. A razão do nada. São Paulo: Scortecci, 2001. ___. As origens. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro / INL, 1971. ___. Dias da terra. São Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1978. ___. Caro Rimbaud. Florianópolis: Bernúncia, 2006. |
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Renato Suttana (1966). Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005), João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005). Mantém na Internet o site “O Arquivo de Renato Suttana”. Contato: rsuttana@bol.com.br |
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