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II BIENAL DE POESIA
SILVES. 2005
"As portas que Abril abriu"
MARIA GOMES
 

Começo por citar Etienne de la Boétie para tentar abrir "As portas que Abril abriu ",

Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.

A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (...) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter. (1)
 
Foi pela liberdade que a Poesia  uniu a voz de seis países irmãos, a mesma língua na mesma luta, o corpo nos mesmos versos.

Foi pela liberdade que a literatura de Angola se elevou à altura do grito épico das catanas  espalhando o sémen que acelerou em Portugal a abertura da primeira porta.

Calando os bombardeamentos de napalm e os insultos de um regime decadente, num golpe de fraternidade disparámos para acontecer Abril nas ruas em forma de poema. Vimos, assim, o Homem agarrar a esperança tão serena.
 
Mas se uma porta nas ruas de um poema se abriu em Portugal, nesse mesmo degrau, a letra de um horizonte intranquilo fixou-se-nos nos olhos.
A 11 de Novembro de 1975, no dia em que nos queríamos independentes, andávamos todos aos tiros, sob várias bandeira da guerra fria. Amolecia o sol e pela noite endurecia a lua. Prosseguimos numa frente de renascimento contínuo cientes da nossa angolanidade entre os estilhaços de uma Nação.

O diálogo continuou e continua  a doer na boca da denúncia, continuou  e continua a fluir em esperança. filtramos um tempo ralo, tão ralo como a primeira palavra titubeada na infância.
 
Chegou, agora, o momento de fazer jus à voz que nos dá esse precioso testemunho: a voz dos meus poetas. MEUS, (que me perdoem os defensores da "globalização"!) porque, de acordo com Eliot, "nenhuma arte é mais obstinadamente nacional que a poesia" (2) Ao exprimirem as suas emoções exumando do sangue o silêncio, são eles que nos levam a presenciar a pureza, os costumes, a moral, os lugares, as prioridades...

Num resgate de valores erguem templos de filosofia, de dignidade e de História.

Vejamos nos cereais a Nação, a parábola do alimento no guerreiro, neste poema tradicional:
 
 
Os cereais que trazem penacho,
Como os guerreiros, estão vestidos como pessoas,
Semeiam-se nus
E quando nascem já estão vestidos.
Eles dormem nos campos como o viajante.
Na eira, precipitam-se uns contra os outros
Na panela, batem contra as paredes.
Como o veado que mama na mãe;
Na frigideira, eles saltam
Como veados
Na erva fresca.(3)
 
Aires de Almeida Santos, um dos poetas angolanos da geração de cinquenta que cantou a clandestinidade, igualou-nos, um dia, ao milho, ao massango ou à massambala... Se mais não tivesse dito, só esta referência seria suficiente para a Poesia o eleger.

Alimento de pássaros, somos nós o Dom Quixote e a lança de um voo fácil . Cabe-nos fazer o garimpo da paz e da identidade.

Entoam inúmeras cadências numa polifonia inesgotável. Ouçamo-las, colmatando o défice existencial de um sopro de amor, que ora sentimos chegar
 
" Nas minhas  palavras residuais" (4)
 
É preciso estar-se convencido de estar vivo
para estar vivo
mesmo que as paredes falem,(5)
 
Morreu mais gente,
e, todos morreram,
como senão morressem.
.
grita a terra nua  (6)

Eu queria escrever-te uma carta.
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
Por que é meu bem
Que tu não sabes ler
E eu- oh desespero! - não sei escrever também.(7)
 
 
Na luta pela articulação de um sistema que perpetue a comunicação da diferença e a influência do discurso, que funda valores mas não os confunda em preconceitos políticos  raciais e religiosos, é pela liberdade, por todas as portas abertas, que eu escrevo, acrescentando à carta terna da Terra,


A minha pátria divorciou-se das rosas encarnadas
Que falavam comigo com o sangue fixo
A arder
 
A minha pátria caiu sem luta num precipício
Consome-se nua
 
Proibida
Quer as palavras das loucas incertezas impolutas.
 
Meus amigos, só existe um país autêntico: o país da poesis , onde a vida resiste na utopia, onde nenhuma forma de poder apaga a transparência do Ser, na palavra que foge.livre.
 

mariagomes
 
a 24 de Abril, em Silves 

(1) Etienne de la Boétie, excerto de " Discurso sobre a servidão voluntária", pág. 27

(2) T.S. Eliot, excerto de " On Poetry and Poets, London, Farber and Farber, 1971. Tradução de Bruno I. Mori.

(3) Poesia Tradicional Angolana, Nanheca Humbe, pág 47, " Poesia de Angola", edição M.E.C.

(4)Maiomona, João, " Trajectória Obliterada", pág.127. Antologia da Nova Poesia Angolana Edição INCM, 2001

(5) Andrade, Costa, " Cela Comum", pág.238 " Poesia de Angola" Edição M.E.C.

(6) Dáskalos Alexandre, " desolação", pag 207, " Poesia de Angola, Edição M.E.C.

(7) Jacinto, António, " Carta de um contratado", "Poesia de Angola", Edição M.E.C.

 

SILVES, CAPITAL DA PALAVRA ARDENTE

 



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